Entrevista com o teólogo César Kuzma – 1ª Parte

Na abertura do Ano do Laicato, dia 26/11/2017, o teólogo César Kuzma, assessor da Comissão do Laicato da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e do Departamento de Vocações e Ministérios do Conselho Episcopal da América Latina – CELAM, presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – SOTER, concedeu entrevista ao Caminho Pra Casa, a Mauro Lopes e ao padre Luís Miguel Modino, pároco na Diocese de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, na qual explicita importante reflexão para alimentar os horizontes do Ano Nacional do Laicato.

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O Observatório publica, a seguir, a 1ª parte desta entrevista:

1. Para começar, recordamos uma expressão do papa Francisco, cujo conteúdo tem sido recorrente em seus discursos e pronunciamentos. No Ângelus do 21° Domingo do Tempo Comum (27/08/2017), o Papa fez uma afirmação ousada. Disse que a Igreja é de todos, e não só do clero. Como você avalia essa afirmação à luz da história de clericalismo que marca a Igreja Católica e neste início do Ano Nacional do Laicato?

R.: Bom, acredito que esta é uma grande pergunta para começarmos a nossa conversa, pois a abrangência do que se pede toca em questões fundamentais da nossa fé e da nossa tradição, mas também em aspectos práticos do que vivemos e sentimos hoje na Igreja.

E aí entra a pessoa de Francisco e tudo o que ele representa para nós, seja para aqueles que o apoiam (eu me incluo neste grupo) seja para aqueles que o agridem, e que já não se escondem. Também o problema do clericalismo, que é uma enfermidade grave (palavras do próprio Papa), de muitas proporções e que avança por muitas frentes. Francisco alerta a este mal e acho que todos devemos nos ater a esta questão, pois é séria. Agradeço, então, a oportunidade e gostaria de começar a responder por aqui.

De modo muito seguro e direto, posso dizer que o clericalismo é uma doença que impede a Igreja de ser serviço e, com isso, inibe as demais vocações, sobretudo os leigos, de assumirem o seu papel, a sua missão dentro do corpo eclesial, e também na sociedade.

O clericalismo traz e vive de uma imagem de Igreja que se quer garantir por si mesma, sem abertura ao novo e que busca sempre o poder, que quer estar acima, que vive “à parte” e agarra-se nas estruturas, na dureza das tradições, no enrijecimento da doutrina, na dominação de uma letra sem espírito e num autoritarismo eclesiástico/hierárquico doente. Trata-se de uma agressão à ministerialidade, é importante dizer isso, pois não abre espaço a outros/outras e fecha-se às novas questões, notadamente urgentes para o nosso tempo.

É uma noção/interpretação eclesiológica totalmente distante e incoerente com o Evangelho, mostrando na prática uma ausência total da ótica do Reino anunciado por Jesus, já que traduz comunhão por obediência e seguimento por doutrinação, ou até mesmo por sacramentalização.

Percebemos que se trata de uma tendência que percorre toda a Igreja, também entre leigos, é bem verdade, mas que avança principalmente entre o clero mais jovem, que se satisfaz em formalismos, panos e paramentos riquíssimos (até medievais) e em ritos antigos, carregados na rigidez, ou camuflados de aspectos modernos, em alguns casos, mas muito distante da simplicidade do Evangelho, o que é lamentável. Seja pela linguagem ou pela vestimenta, cria-se uma estrutura que decide por caminhar separada do mundo, distante dos problemas e com a sustentação de um ar superior.

É onde se sustentam os críticos do Papa Francisco, queixando-se da laicidade ou abertura que ele quer resgatar na Igreja, que em princípio, coloca a mesma em um diálogo constante com o mundo, mantendo-a fiel no anúncio do ressuscitado e naquilo que foi afirmado com o Vaticano II. Figura também aí alguns bispos e cardeais que ainda sustentam posturas de príncipes, algo bem diferente dos pastores com “cheiro de ovelha”, que pede Francisco. Por isso mesmo é um mal, é uma doença, um pecado grave que nos afasta do seguimento e da práxis de Jesus. É preciso mudar.

Agora, partindo da oração do Ângelus e da reflexão pronunciada pelo Papa naquele dia (mesmo já sendo distante, mas ela é pertinente por causa do Ano do Laicato que se inicia no Brasil), é importante dizer que este texto nos apresenta duas leituras interessantes e que se somam: na primeira parte do texto, quando encontramos a pergunta de Jesus (“Quem dizem os homens ser o Filho do Homem” – cf. Mt 16,13), temos a chamada “crise da Galileia”, um ponto crucial da vida de Jesus e que é muito desenvolvido na cristologia atual.

As pessoas começam a abandonar Jesus e isso leva às exigências do Reino, à lógica do seguimento, enfim, a partir daquele momento há uma mudança na atitude de Jesus e em seus discursos e ações. É o que vemos na sequência dos relatos. Mas também, e aqui é o segundo ponto, mais eclesiológico, ao questionar-se, Jesus percebe na voz de Pedro uma fala do próprio Deus (“Tu és o Cristo” – cf. Mt 16,17), e esta presença o fortalece e o faz seguir a Jerusalém, assumindo a condição de profeta. É esta certeza da Palavra que vem de Deus que deve garantir a Igreja, onde entra aí o primado de Pedro (que é destaque no relato) e a função ministerial petrina que tenta e espera garantir a unidade em base a Palavra que nos sustenta e que nos coloca para frente, em missão. Em resposta, Jesus diz: “Tu és Pedro” (Mt 16,18).

Acho que isso diz muito para o nosso contexto eclesial. Muitas são as vozes contrárias e de oposição ao Papa Francisco. Neste mesmo tom e diante das adversidades, ele pode até se questionar e perguntar sobre a sua missão. Por certo que sim, ele é humano! Todavia, a resposta a esta interpelação não se encontra apenas em nossas respostas e apoio (embora necessários!), mas na confiança e no discernimento da própria fé, na certeza de que há algo a seguir e que para este feito se faz necessário o trabalho de todos, de todos aqueles de boa vontade, que são como “pedras pequeninas” (palavras dele), mas mesmo assim são preciosas, pois se transformam em “pedras vivas”, onde todas têm o seu lugar na missão da Igreja.

A ótica do clericalismo é como a daqueles contemporâneos de Jesus que não o reconhecem em sua missão. Olham para ele e veem outro, eles o comparam e não percebem a novidade. No entanto, diante do olhar da fé, é possível reconhecer um novo caminho, uma nova postura, um novo chamado. A pedra de que fala o Evangelho e que assegura o Papa não está apenas no ministério petrino ou nos ordenados, mas em “todos aqueles que ouvem a voz do Senhor e se deixam conduzir pelo mistério”, sendo parte importante na construção do Reino de Deus.

2. Os conservadores acreditam que a Igreja é uma “sociedade perfeita” e não uma “comunidade de vida”, como o Papa a definiu no mesmo discurso. Essas visões distintas têm implicações brutais, não?

R.: A ideia de uma sociedade perfeita é antiga, muito forte antes do Concílio e diria que a mesma não tem mais espaço no mundo de hoje. Não cabe. Além de criar um mundo a parte, afasta todas as pessoas e não permite a ação da graça e a vivência da misericórdia.

Francisco sabe disso, pois é um Papa fruto do Concílio, e para o Vaticano II a Igreja é comunhão, onde há espaço para todos (pois a Igreja é povo de Deus!) numa diversidade que converge para uma unidade, em Cristo. Por isso é importante o sentimento de communio, onde Cristo está no centro e ele garante a dignidade a todos (cf. LG n. 32), a partir do batismo e da experiência salvífica/libertadora que temos com ele, na história, mesmo com toda a sua provisoriedade.

Assim, ver a Igreja como uma sociedade perfeita é projetar nela uma imagem platônica, longe da realidade, iludida por uma perfeição que só é real em promessa, em esperança, numa destinação escatológica. Qualquer tentativa de se criar neste mundo, neste tempo e nesta história, uma imagem de “Igreja triunfante” ou de “sociedade perfeita”, como eles chamam, contraria a proposta eclesiológica apresentada pelo Vaticano II, que a terá sempre como “peregrina” (cf. LG n. 48). Entender a Igreja como peregrina é situá-la no caminho apresentado por Jesus e nas exigências de sua práxis. Por isso, a importância de ver a Igreja como uma comunidade sempre viva, aberta ao novo que vem, garante uma perspectiva nova.

Isto é bem evidente na Evangelii Gaudium, quando Francisco nos diz que a história da Igreja se faz gloriosa não por conta de projetos expansionistas e linhas bem traçadas, mas pela sua condição peregrina e militante na história, nos sacrifícios e nas esperanças, nas lutas diárias e na constância do trabalho fatigoso (cf. EG n. 96). Se isso não ocorre, não trazemos a marca do Cristo ressuscitado-crucificado e nos fechamos em grupos de elite, enquanto a nossa volta, existe uma multidão sedenta por Cristo (cf. EG n. 95), mas um Cristo vivo, não um abstrato religioso que se transforma apenas em um destino de culto. Por isso a intenção de uma “Igreja em saída” que Francisco propõe não cabe dentro de certos aprisionamentos eclesiológicos. É necessário um despojamento e uma abertura.

3. No Concílio Vaticano II, a Igreja se autodefiniu como Povo de Deus. Os conservadores nunca aceitaram isso e, no Sínodo de 1985, buscaram restaurar as visões pré-conciliares, tanto que a expressão Povo de Deus sequer aparece mais. Eles retomaram de maneira cada vez mais explícita as formulações pré-conciliares. Em seu livro, “Leigos e Leigas” (ed. Paulus/2009), você menciona uma citação da encíclica Vehementer nos, de Pio X, um dos ícones dos restauracionistas, na qual ele afirma claramente que há duas categorias de pessoas na Igreja, sendo os leigos e leigas um grupo de segunda categoria. Reproduzo e amplio a citação que está no seu livro: ele definiu a Igreja em 1906 como “o Corpo místico de Jesus constituído de Pastores e Doutores, uma sociedade de homens em que se encontram líderes que têm poderes plenos e perfeitos para governar, ensinar e julgar, o que resulta que a Igreja é por sua natureza uma sociedade inigualável, uma sociedade formada por duas categorias de pessoas: os Pastores e o Rebanho”. Para Pio X, “estas categorias são claramente distintas entre si, e somente no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros de acordo com os objetivos da sociedade; quanto à multidão, ele não tem outro dever que o de se deixar guiar e seguir, como um dócil rebanho, os seus Pastores”. Como você avalia a permanência desta concepção em amplos segmentos do clero?

R.: Eu avalio com grande preocupação! A definição da Igreja como Povo de Deus foi um marco e um avanço do Vaticano II. Precisamos ter isso claro. Um marco porque com ela se mudou a perspectiva eclesiológica que se tinha, não mais piramidal, mas de comunhão, na diversidade do povo e na valorização do batismo como sacramento de maior importância, pois é por ele que nós nos incorporamos a Cristo e assumimos a seriedade da nossa vocação/missão. Há diferenças de responsabilidade, mas igualdade em dignidade; somos um em Cristo Jesus.

A partir de então, a Igreja não é mais definida pelo clero, pela hierarquia, mas pela “totalidade” dos fiéis que compõem o povo de Deus. Por esta razão, alguns autores dizem que a eclesiologia do Concílio deve ser vista pela ótica do Povo de Deus, pois é a grande novidade, uma chave de leitura de primeira grandeza (J. B. Libanio). Logo, é um avanço, porque valorizou e ampliou a compreensão de ministerialidade da Igreja. Resgata a ideia do sacerdócio comum de todos os fiéis, colocando o sacerdócio hierárquico, que tem a sua importância, a serviço dos fiéis e não o contrário. Podemos notar que o Concílio quer romper com toda presunção de uma super-vocação e de um novo clericalismo, pelo menos em teoria.

Na prática, sabemos que nem tudo ocorreu como foi desejado, haja vista os movimentos contrários ao Vaticano II, o Sínodo de 1985 que você menciona e outros movimentos e ações que tentam impedir a ação dos leigos e das demais vocações, mantendo a imagem de uma igreja identificada excessivamente pelo clero e não pela comunidade. Mesmo com as definições do Vaticano II e também com a Exortação Christifideles Laici (João Paulo II/1988) e outros documentos, como na América Latina com as Conferências de Medellín (1968) até a de Aparecida (2007), e outros, ainda temos e vemos alguns grupos que insistem numa imagem de Igreja que reproduz uma sociedade desigual (visão de Pio X), mantendo leigos passivos e submissos, sem autonomia e sem incentivo para uma percepção crítica da fé.

É um abuso, não é mesmo? Em uma carta ao Cardeal Marc Ouellet, em 2016, o papa Francisco recorda que desde o Concílio se falou muito sobre a “hora dos leigos”, mas para o Papa esta hora está tardando a chegar. Para Francisco, e aqui nós nos somamos a ele, as causas são várias, mas a passividade tem sim certa culpa do próprio laicato, é um fato, mas também das estruturas, que não formam e não permitem um espaço favorável, onde leigos e leigas possam exercer criticamente e com maturidade a sua vocação.

Isso só nos mostra que é urgente recuperar o Concílio e que os leigos devem assumir o seu papel, com resistência e esperança, com autonomia e coerência, num jeito próprio de ser e fazer Igreja. Já estes que querem sustentar esta imagem turva de Igreja, de modo arcaico e distante das urgências de hoje, eles nos agridem porque sabem que o seu tempo já passou, então querem agir com força, violência, no fechamento, inibindo uma vontade maior que vem do Espírito, que é livre e sopra onde quer.

4. Em seu livro você afirma que nas primeiras comunidades não havia essa separação entre cristãos de primeira e segunda categoria e nem mesmo a dualidade entre clero e leigo. Como era a Igreja então? É possível atualizar esta experiência original?

R.: Não havia porque a Igreja estava nas margens da história, nas periferias, ela era perseguida e a grande preocupação era o anúncio do ressuscitado, como uma força capaz de mudar o modo de viver e compreender as coisas. Dava-se a vida por isso. O confronto era com o mundo, pois eram perseguidos e a unidade deles (“um só coração e uma só alma” – At 4,32) era um modo não agressivo e profético de se enfrentar o mundo, oferecendo outro espaço e outro tempo, até com a própria vida. Fazer ali a “memória do Senhor” (Eucaristia) tinha mais do que uma intenção litúrgica ou celebrativa (não era assim), mas uma memória escatológica que dava força e razões às esperanças.

Não quero dizer com isso que na Igreja primitiva também não houve tensões e divisões. Evidente que sim, tanto que Paulo acusa: “Estaria Cristo dividido?” (1Cor 1,13), dentre outros exemplos. Mas a nossa chamada de atenção é para o anúncio do ressuscitado motivado por uma experiência fundante, um encontro, um propósito, uma fé.

Acredito realmente que um olhar para as fontes da nossa fé cristã pode nos dar outras perspectivas de seguimento e um encorajamento para a nossa práxis eclesial. A institucionalização da Igreja trouxe preocupações adversas que bloqueiam o Evangelho e direcionam o nosso olhar para outro lado e esquecemos da eterna novidade que ele nos traz. Parece loucura, mas Francisco quer encorajar a Igreja a redescobrir a “alegria do Evangelho” e esta é uma alegria que transborda. Parece que nos esquecemos disso! Se na resposta da Igreja antiga precisou se falar que não há escravos ou livres, homens ou mulheres, mas todos são um em Cristo Jesus, deveríamos trazer esta máxima para hoje, como uma definição basilar, para que não haja mais clero ou leigos, mas para que todos possamos ser uma só coisa nele. Pode parecer utopia, mas ela tem a sua importância, pois nos faz olhar para frente e alimenta o caminhar da esperança. É possível mudar. É necessário. O teólogo J. B. Metz diz que o Evangelho tem memórias subversivas. É verdade, e elas podem nos libertar.

5. Você fala que a relação entre clero e laicato é marcada por uma tensão permanente. Quais as características dessa tensão?

R.: Vemos isso pela história da Igreja e pela maneira como ela foi se construindo até os dias de hoje. A separação entre os que sabem e os que não sabem, que foi o que deu toda origem ao modo depreciativo que existe no termo leigo, fazendo uma separação de classes e posições. A manutenção de um laicato passivo, que apenas recebe e não questiona. A declaração de Pio X e sua incidência até hoje, a falta de espaços e a resistência de uma libertação dos leigos para o alvorecer de uma missão fortalecida, para fora dos muros eclesiásticos.

São tensões e desiquilíbrios que devem ser superados. Vale ressaltar também que isso muda de lugar a lugar e sempre houve na história leigos proféticos e que foram verdadeiros santos, mártires da fé, o que coloca o chamado do cristão para além de qualquer rótulo que possamos enquadrar. Urge também contar uma história da Igreja ainda não contada ou não tão valorizada, e ela existe e não está nos altares.

Eu tenho comigo a tese de que os leigos devem se afastar deste modelo estrutural e buscar novos caminhos, novas maneiras de viver a fé, dentro do chamado que é próprio da sua vocação, que é o mundo secular e as grandes causas da humanidade. Aqui está a vocação e a missão dos leigos! Ali devem ser sal e luz. Sujeitos da história. É onde os leigos, como Igreja que são, podem oferecer o seu testemunho e o seu serviço concreto. Observo que as ações de Francisco também vão por aí.

O cristianismo tem algo a dizer ao mundo e este “algo” não se limita a esfera do sagrado, mas é carregado de vida, justiça e esperança, capaz de propor um novo ethos, com um jeito leve e livre para dizer as coisas. Hoje, as estruturas eclesiais nos impedem, pois estão centralizadas em outro tipo de ministério e numa visão eclesiológica fechada, e mesmo a prática sacramental, do modo como é apresentada, favorece este desequilíbrio e a falta de protagonismo, pois o leigo é aquele que sempre recebe e que sempre responde de modo passivo ou submisso. Penso que é urgente resgatar a teologia do batismo como inserção da pessoa em Cristo, onde passamos a viver como novas criaturas no mundo onde estamos, diante das grandes questões e urgências, abertos ao novo e no seguimento sincero do homem de Nazaré (que sempre nos interpela), fazendo da sua práxis do Reino a nossa práxis de vida e de fé.

Uma sociedade aberta exige leigos também abertos, capazes de dialogar e responder de modo autêntico e livre às exigências da fé e as interrogações que chegam à fé. Se a compreensão de ministério tem sempre como referência o dado sagrado ou a colaboração e cooperação com o ministério ordenado, os leigos jamais vão avançar para algo diferente. Poderíamos perguntar: como é ser leigo, sujeito eclesial, numa Igreja clericalizada? Impossível! É necessário romper isso!

Na Evangelii Gaudium Francisco nos pede ousadia, pede um arriscar, um primeirear, uma saída. Não se sai com a catedral nas costas, mas se sai de modo kenótico, despojando-se de tudo o que nos prende e limita o nosso ser e estar, e ainda aberto às novidades que a missão nos provoca. Seguindo um panorama bíblico, digo que os leigos devem ter o mesmo sentimento de Cristo Jesus (cf. Fl 2,5), aí se encontra a saída, e é desta forma que devem se abrir para um novo caminho e um novo chamado à espiritualidade, uma nova forma de ser e estar no mundo. Um novo modo de ser Igreja.

6. Depois do Vaticano II houve avanços, que chegaram a seu momento culminante na Conferência de Medellin, em 1968, onde a Igreja latino-americana não apenas saudou como estimulou a organização do laicato. Como foi possível regredir tanto, até uma concepção tão clerical, de fundo monárquico?

R.: Assim como houve um pós-Concílio também houve um pós-Medellín, que tentou frear os avanços conciliares e a nova dinâmica eclesial que surgia na América Latina, também marcada pela Teologia da Libertação. Mesmo tendo avanços em algumas partes, Puebla (1979) já sofreu esta perda; muito mais Santo Domingo (1992), e há reflexos deste frear também em Aparecida (2007), muito embora esta Conferência tentasse resgatar uma postura profética no Continente. Mas, ainda assim, passaram-se dez anos da última assembleia do CELAM e pouco se fez ou se avançou na linha de Aparecida.

Por exemplo: o que significa ser discípulo missionário, hoje? Será que há alguma mudança?… Por certo que não. Raras exceções. Continuamos com as mesmas estruturas e linhas de ação, seguimos com os mesmos planos e projetos pastorais, a mesma insistência na formação clerical dos nossos seminaristas e na pouca valorização da formação laical, sem contar ainda às dificuldades que sofre a Vida Consagrada, mesmo tendo no Documento de Aparecida chaves importantes para uma renovação eclesial no panorama da nossa missão. Fala-se muito em mudar mentalidades para mudar estruturas, contudo, se não mudarmos algumas estruturas não conseguiremos mudar certas mentalidades. É um fato, não?

Francisco representa uma esperança neste sentido, pois como diz o teólogo J. C. Scannone (alguém muito próximo ao Papa). Francisco tenta resgatar uma agenda inacabada do Vaticano II, e faz isso também com a Conferência de Aparecida, onde teve uma participação particular na execução do documento. Ele amplia isso para toda a Igreja, chamando a atenção de todos para os novos “sinais dos tempos”.

7. A repressão às Comunidades Eclesiais de Base foi de largas proporções. Elas foram quase aniquiladas pela hierarquia, exatamente pela proposta de protagonismo leigo. Elas parecem estar se reorganizando, mas ainda sob olhares hostis de boa parte da hierarquia. Como você projeta que será esse processo nos próximos tempos? O 14º Intereclesial das CEBs, marcado para janeiro em Londrina, está sendo aguardado com expectativa…

R.: As Comunidades Eclesiais de Base (as CEBs) constituem uma forma particular de ser Igreja no Continente Latino-Americano e esta prática já pode ser observada em outros continentes e localidades, o que nos leva a crer que é um movimento do Espírito. Avança para além das proibições, que são verdadeiras, foram fortes e ainda existem. Mas acho que temos outro momento agora. Os tempos modernos trouxeram novas formas de organizar as CEBs, mesmo sustentando a riqueza evangélica do início, temos hoje outras riquezas que se somam e trazem um frescor sempre novo.

O Intereclesial quer ser um encontro destas Comunidades, com muita troca de experiência, fortalecimento de lideranças, discussões pastorais, sociais e políticas, além da vivência de uma espiritualidade que transborda em uma grande celebração. Juntam-se ali pastores e ovelhas, mas sem cajado ou redil, e sim num ambiente fraterno e acolhedor, onde todos são iguais e Cristo ocupa o centro. Todos são ovelhas de um único pastor: Cristo.

O encontro de Londrina será o segundo sob o Pontificado do Papa Francisco, sendo que no anterior, em Juazeiro (2014), os participantes receberam uma mensagem do próprio Francisco, que diferente de alguns bispos brasileiros, vê na força popular e no jeito de caminhar das CEBs um sopro do Espírito que clama por vida, justiça, esperança e libertação. É necessário caminhar juntos, sempre!

8. A estrutura piramidal e clerical mantém os jovens afastados da Igreja?

R.: Não seria correto dizer que afasta os jovens, pois muitos movimentos conservadores estão carregados de jovens e isso é fácil de observar pela mídia católica e pelos encontros de juventude, JMJs entre outros. No entanto, há que colocar duas perguntas para entender este panorama: o que a Igreja espera do jovem? Mas também, o que o jovem espera da Igreja? Se não houver uma comunicação entre estas duas perguntas nós poderemos ter a Igreja tanto vazia quanto cheia (realidades que acontecem), mas, em qualquer lado, distante da proposta do Evangelho e do seguimento de Jesus, que como diz o Concílio é eternamente jovem.

Faz-se necessário também ter uma atenção especial para com os jovens, principalmente por conta dos fenômenos modernos e pós-modernos. Diante das incertezas da vida, a juventude encontra muitos caminhos e não podemos ignorar que entre estes caminhos estão às drogas, a violência e a falta de oportunidades numa sociedade cada vez mais injusta, intolerante e agressiva. Para aqueles que são pobres ainda é pior. E no Brasil, para os que são negros mais ainda, pois junto aos retrocessos políticos no Brasil pós-golpe de 2016, estão à acentuação do racismo e o extermínio de jovens, em sua maioria negros, vítimas de uma sociedade (esta sim!) desigual.

É urgente fortalecer no jovem a força de viver e a capacidade de criar e de se aventurar, de ter ousadia, para que possam fazer barulho na sociedade, e também na Igreja. “Hagan lío!”, disse Francisco aos jovens argentinos no Rio (2013). Esta é a grande riqueza da juventude e que impulsiona a sua capacidade de sonhar e de criticar, de amar e de se rebelar.

 

9. E os movimentos carismáticos? Eles têm essa contradição, entre o protagonismo leigo, mas, ao mesmo tempo, uma submissão canina à hierarquia. As estruturas mais enraizadas, como Canção Nova e RCC são profundamente clerizalizadas. Mas há novidades nesse segmento?

R.: Parece uma contradição, pois surgiram como resposta e na intenção de algo novo, mas o que vemos é outra coisa. Sempre com exceções, obviamente. Retirando a ideia do começo, que era de se contrapor aos grupos de linha mais pastoral e libertadora de antes, também víamos nestes grupos um espaço do leigo. Eu me lembro de que no início (pelo menos na minha experiência de juventude, há 20, 25 anos atrás) eles não encontravam espaços em muitas paróquias e se reuniam em espaços alternativos, além de sempre favorecer uma ação dos leigos, para dentro e para fora da Igreja.

Porém, o que vemos hoje é um enquadramento e uma mistura. Por um lado, tratam a liturgia e o celebrar como algo aberto e festivo, numa linguagem que comove e encanta a muitos, mas por outro lado, vemos uma submissão cada vez maior à hierarquia e uma clericalização fortíssima dos ministérios, seja o laical seja o sacerdotal. Nisso você tem razão. Vemos isso pelas vestimentas e práticas que antecedem o próprio Vaticano II. Sem contar o espaço político que vão alcançando, em partidos, em programas e emissoras de rádio e TV, etc; há também o lado financeiro, pois movimentam muito dinheiro.

É estranho porque em suas formações, os seus expoentes defendem uma postura rígida, uma obsessão pelo Magistério eclesiástico, pela moral cristã e pelas palavras do Papa (mas parecem ignorar Francisco!), e, ao mesmo tempo, este mesmo grupo que parece ser rígido na formação se vê às voltas com “cercos de Jericó” e práticas demasiadamente emotivas e sem criticidade, até ingênuas. Esforça-se muito para abraçar um Cristo do céu, mas pouco se faz para se aproximar dos crucificados da história. Sei que é uma impressão parcial, mas é o que vemos com maior frequência.

Penso eu, que a multiplicidade de dons e carismas faz bem a Igreja e que estas expressões também têm a sua riqueza e importância. Não poderia dizer o contrário, por uma questão de eclesialidade e compromisso com o Evangelho. Todavia, em alguns casos, vemos expressões que não somam e que causam mais divisões do que unidade, intolerância, violência, falta de catolicidade e discernimento ecumênico.

Esta é uma realidade muito próxima do Brasil, mas, com certeza, deve ter algo parecido em outras partes do mundo também.

(Continuação em breve)

Fontes:

Caminho Pra Casa