E se a compaixão fosse a chave de leitura de nossa vida cristã?

Via compassionis

Por qual caminho ir? O cristão responde logo que deve ser pelo caminho que Jesus anunciou, caminho que é a própria vida de Jesus como verdade. Ora, Jesus diante das multidões, o mesmo que chorou por Lázaro, sentia compaixão. Esse sentimento, essa força movida pela empatia, bem que poderia ser uma chave constante de leitura da própria vida cristã, tanto quanto a palavra misericórdia.

Do latim “compassionis”, compaixão significa “sentir comum” ou “união de sentimentos”. Na perspectiva da espiritualidade é ser afetado pela situação do outro, por seus dramas, por suas dificuldades. No caso, “sentir comum” estaria ligado ao sofrimento e não à alegria, sentida como júbilo. A palavra “compaixão” foi reservada, portanto, no seu uso comum, para a aproximação solidária, desejosa de aliviar a dor do outro, ou de tão somente estar do lado de quem padece, quando nenhum consolo é possível senão estar perto.

Agora nos perguntemos: quem sente compaixão e de quem? Jesus sentia compaixão da humanidade. Por dentro dela, encarnado nela, ele conhecia fragilidades e grandezas. Sabia o quão baixo podia ser, como tão grande também. Hoje a compaixão foi sequestrada. Quem sente compaixão sente só pelos pares. Não sente compaixão pela fragilidade diante das potencialidades do humano. Sente-se compaixão seletiva. Não há aquela consciência sublime que diz: “Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem”. A frase de Jesus na cruz proclama ao mundo a “crença” de Deus no homem. Jesus sente compaixão porque acredita que o homem pode ser mais, que o mal é acidental e não essencial, que o pecado é manifestação de uma luz ausente, que não tomou conta da consciência. Se o ser humano não acredita em Deus, Deus acredita no ser humano.

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A compaixão dos que fazem seleção não acredita no ser humano. Por isso, não se pode, como é o caso atual, ter piedade de refugiados islâmicos, respeitar homossexuais, lutar com sem tetos, sem terras. Por que acolher esses que são uma bomba a explodir? A via da compaixão é empatia pela dignidade do ser humano, por sua grandeza e vida ocultadas. A negação da compaixão aos que sofrem de forma seletiva, baliza-se na compreensão de que o outro não carrega o mesmo tesouro que carregamos, gerando antipatia, não identificação pelo semelhante, com uma visão de si mesmo como melhor e mais humano. Não é sem razão que quem pensa assim precisa dizer para si mesmo e para o mundo que alguns não são humanos, que são vagabundos, escória, para poder, com consciência tranquila, espezinhar os que “não sabem o que fazem” e os que lutam pelo que sabem. Se há aqueles que não são humanos, mas monstros em aparência humana, então eles podem ser destruídos sem piedade, podem ser rejeitados, deixados à margem.

O “sentir comum”, central para a vida compassiva, necessita também de encarnação. Paulo Apóstolo se alegrava com quem se alegrava e sofria com quem sofria. Dizia que era tudo em todos. Aqui não estamos na maltratada ideia de tomar o lugar do outro. Estamos em algo mais profundo. Assim como Jesus é ser humano, encarnado, cada um de nós é o outro. Somos, diferentes, de culturas diversas, partícipes da mesma humanidade, do mesmo destino comum. Nossas diferenças são o jeito de sermos mais em cada um. Nós somos nós e o outro, o que ele tem de precioso e diverso representam as infinitas faces do que poderíamos ser. Quando as diferenças são usadas para separar, tal façanha pobre contribui para o obscurecimento da própria humanidade.

A julgar pelo que presenciamos, andamos longe desse sentimento. Os que sentem e “oferecem” compaixão e os que recebem ela, hoje, fazem parte de um mesmo mundo, enfadonho, de perspectiva corporativista. Não conta a diferença, o sofrimento, a dignidade roubada, para essa compaixão dos bons e sua recusa à profunda igualdade de raiz, em termos de humanidade. Nesse sentido, a mensagem cristã, a vida de Cristo, é cura para essa compaixão autolegitimadora, que não se arrisca, que não estende o sentido do ser humano para além das divisas pessoais e corporativas. Há todo um caminho espiritual a fazer. A via da compaixão evoca muito mais que arroubos religiosos de um final de dia, num confortável momento, no qual se amacia o íntimo com alguma oração, no caminho da autoajuda.

A compaixão encarnada de Jesus se despojou de seguranças. Era livre para dar a vida. Sem esse ponto de partida, o que chamamos de compaixão na atualidade não passará de compadrio entre os que defendem interesses próprios.

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Magno Marciete do Nascimento Oliveira tem mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE. Atualmente reside em Imperatriz do Maranhão, onde atua como professor na Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Criador do Blog Tapeçaria das Ideias.

Fonte:

Tapeçaria das Ideias