Assistimos a um processo crescente de revolução no mundo da família: constituição de novos modelos de famílias parentais[1], famílias monoparentais[2], famílias que surgem facilitadas pela internet visando apenas à parceria de paternidade e não ao amor ou à constituição de uma família conjugal, uniões homoafetivas, técnicas de inseminação artificial, útero de substituição, etc. Esses e muitos outros processos de mudanças no campo familiar chegam a causar estranhezas, levando não poucos a pensar tratar-se do fim da família devido a atitudes de pais e mães errantes, desvairados. Não faltam aqueles que falam de uma desordem da família. Enfim, muitas são as angústias geradas nesse tempo e as buscas de compreensão e luzes que possibilitem encontrar caminhos pastorais visando a evangelização.
No intuito de oferecer aos presbíteros da Arquidiocese de Belo Horizonte uma formação permanente, e em sintonia com as proposições que a Igreja no mundo inteiro faz nesse tempo em que se realiza o Sínodo dos Bispos sobre a família, a pastoral presbiteral – no cuidado com a vida e o ministério do presbítero – organizou e realizou o segundo encontro formativo nesse semestre abordando, justamente, o tema família e os seus desafios pastorais, bem como a repercussão e os impactos do mesmo na vida do presbítero e na sua ação pastoral.
Este momento formativo contou com a presença do Pe. Márcio Fabri – CRSS, que, com seu vasto conhecimento tanto acadêmico quanto prático, trouxe contribuições a partir de considerações antropológicas, filosóficas, culturais, éticas e pastorais, viabilizando uma postura por parte do presbítero no enfrentamento e condução de situações que devem ser acolhidas e acompanhadas, como oportunidade de evangelização considerando cada pessoa num profundo respeito a sua singularidade, dignidade e valor.
Destacamos, a seguir, algumas das elaborações reflexivas por parte do assessor que viabilizam uma conduta pastoral priorizando a evangelização.
Considerando a realidade da família no extenso escopo de transformações, é preciso destacar: a chave cultural, a social com o recondicionamento das sociedades, e o específico da Igreja, portanto do presbítero, que é o de estar nesse contexto como aquele que lida a todo o momento com valores, regras, princípios e, ainda, com que ferramentas os evangelizadores se inserem nesse espaço.
A transformação cultural adquire, através da tecnologia, uma nova forma de produzir a vida e de nos entendermos. Por conseguinte, surgem novas interpretações dos fenômenos acarretando, também, alterações no mundo dos sentidos acerca de Deus, do homem, da vida, da natureza. Com as transformações há a apropriação de muitos ganhos advindos dos processos científicos e tecnológicos, embora no “pacote” se encontre também muitos desafios como a banalização, a provisoriedade, o descartável, a desumanização, a instrumentalização. Diante de todo esse contexto, faz-se necessário perguntar-se pela essência do eu, pela consistência de um projeto de vida, enfim, pelo sentido da mesma.
Ao apresentar uma leitura a partir do viés social que ajudasse a compreender os desafios desse tempo em relação à família, priorizou-se a dimensão do sujeito e da subjetividade no contexto cristão. Para isso, como ponto de partida, voltamo-nos para o aspecto da subjetividade de Jesus: não era clérico, nem levita, não participava de nenhuma classe religiosa, mas simplesmente era da tribo de Judá. A postura de vida proposta por Ele era a de abrir um caminho de vida em que todos se identificassem como filhos (as) de Deus; um caminho de aprendizes, daí o fundamento discipular. A proposta do Mestre era a do companheirismo discipular. O processo tinha como etapas: o chamado, o discipulado e a vivência em comunidade. A partir desta proposta Jesuânica, tinha-se uma visão do sujeito ético como aprendiz.
Ao longo da caminhada histórica, aos poucos, essa visão e comportamento desse sujeito ético desequilibrou-se com a entrada da Igreja no império. Essa mudança de postura ética influenciou a concepção de até então em relação ao próprio Jesus: de Mestre que propunha um caminho, passou a ser o grande expiador. Assim toda a compreensão de pecado, do sacrifício eucarístico, passou a destacar mais o aspecto da expiação. Dessa forma, a mediação passou a ser através do tribunal da misericórdia por parte daqueles que podiam perdoar em nome de Deus. Logo, aqueles sujeitos éticos começaram a girar em torno do confessor. Era ele quem determinava o que era pecado ou não. Todo esse processo, diga-se de passagem, girava em torno da culpa e da expiação do pecado. Assim, essa compreensão foi sobreposta àquela proposta do Mestre, que era a do chamado, do aprendiz e a do discipulado.
A terceira vertente reflexiva nesse contexto de mudanças volta-se para aqueles que se encontram e como se encontram nesse mundo e com que ferramentas de ação para concretizar o processo de evangelização. Estamos falando dos cristãos, evangelizadores, comunidades e presbíteros. De um lado, parece estar claro que não será saudável a continuidade de uma prática em que se prioriza a postura do juiz, daquele que tem o poder de definição, bem como continuar endossando o imaginário das pessoas que também se orientam no princípio do poder ou da delegação do mesmo ao presbítero, ou a quem quer que seja. Do outro lado, considerando que as coisas não são boas ou ruins a princípio, faz-se muito mais necessária e importante a postura com que nos colocamos diante das questões hoje apresentadas, seja no campo da subjetividade, seja no da família, abrindo janelas, propondo caminhos criativos que visam orientar a vida das pessoas.
Neste encontro de formação permanente dos presbíteros da Arquidiocese de Belo Horizonte, houve a oportunidade de partilhas por parte dos presbíteros divididos em suas respectivas regiões acompanhados por seus vigários episcopais e bispos referenciais, que a partir do método ver, julgar, agir, trouxeram contribuições a partir da realidade em que estão inseridos, e como percebem os desafios, quais as demandas urgentes, como analisá-las a partir de referenciais antropológicos, psicológicos, culturais e religiosos. Essas ferramentas ajudam a orientar as posturas esperadas no enfrentamento e orientação dos desafios visando à evangelização não só das famílias, mas com as famílias.
Apresentadas as partilhas das regiões episcopais, o Arcebispo Metropolitano fez suas considerações. Vivemos inegavelmente um processo radical de transformação antropológico-cultural. Não é possível nos furtarmos a ele. Faz-se necessário habituar-se ao mesmo, embora o ser humano tenda sempre mais ao conservadorismo como anteparo e defesa diante do que nos desinstala e provoca angústia, a qual gera, por sua vez, um desconforto enorme. Na tentativa de evitar tal processo, constata-se, não raras vezes, a prática de posturas ultraconservadoras e autoritárias. A estrutura do agente de evangelização quer seja leigo ou presbítero, facilitará ou dificultará o enfrentamento e a busca de caminhos propositivos diante dos desafios pastorais no campo familiar. Temos um conceito familiar com uma boa fundamentação bíblica, teológica, cultural, mas isto não nos autoriza a cultivarmos uma postura de fechamento a outras experiências e pessoas que porventura se oponham a ela; mas por outro lado buscam, elas também, viverem princípios e valores como norteadores de suas vidas. Assim, nossas comunidades são chamadas, de fato, a ser espaços de acolhimento, convivência e discipulado. Somos todos aprendizes com aquele que é o único Mestre. Seja qual for a família, que configuração tenha, sem idealizações, ela é sempre pedagógica, é uma escola que visa, num respeito prioritário ao outro, proporcionar uma experiência de humanização diante de um crescente processo de desumanização. É preciso buscar permanentemente a centralidade da família, da pessoa. Somos impactados pelo processo de mudança no campo familiar, e não somente, gerando a sensação de uma inquietante desconstrução das verdades. Ao mesmo tempo, numa postura sempre aberta, reflexiva, dialogal, construtiva, sem exercermos o autoritarismo, a tentação de respostas prontas, o juiz da questão, experimentamos as contribuições que esse mesmo processo nos traz atendendo ao novo de Deus que ai também se manifesta chamando-nos a conversão pessoal e eclesial. A família de Jesus de Nazaré é um horizonte que nos ajuda a um pensar crítico e pastoral, considerando a realidade familiar diante da qual nos deparamos.
[1] Famílias parentais: filhos de pais que não são fruto de uma relação conjugal ou sexual.
[2] Famílias monoparentais: com a liberação sexual, década de 60, mulheres que queriam ter filhos sem ter parceiro fixo, assumiam a maternidade sem que seu parceiro soubesse.
Pe. Joel Maria dos Santos
P/ Equipe Executiva do Observatório da Evangelização