Um novo mundo possível e o papa Francisco

“quem parece ter conseguido unir muitos movimentos sociais e diante da sociedade internacional representar uma figura de esperança e que convoca a humanidade para um novo mundo possível tem sido o papa Francisco.”

A partir dessa década, mesmo envolvendo Ásia e África onde ocorreram três dos 14 fóruns mundiais, o processo se fragilizou, o número de participantes diminuiu drasticamente e mesmo em si – no ponto de vista da força e das propostas surgidas nos encontros e discussões – o Fórum parece ter perdido credibilidade e mesmo vitalidade. É como se muita gente pensasse: Fizemos marchas, gritamos “Povo unido jamais será vencido” e o que vimos foi sempre perdas e derrotas. O mundo hoje é pior do que quando começamos o processo dos fóruns. Eles parecem não ter adiantado nada. Claro que essas coisas não são expressas assim. As discussões foram mais no sentido de que o Fórum não pode continuar sendo não diretivo, deveria ter conclusões mais incisivas e propositivas etc. Alguém propôs que a partir de agora, fossem mais fóruns temáticos e não tão genéricos etc.

No Fórum mais recente, em Montreal, o lema já não foi mais: “Um novo mundo é possível”. O que ali se colocou foi: “Um outro mundo é necessário. Juntos, podemos torná-lo possível“.

Nesse contexto, quem parece ter conseguido unir muitos movimentos sociais e diante da sociedade internacional representar uma figura de esperança e que convoca a humanidade para um novo mundo possível tem sido o papa Francisco. Vamos tentar compreender melhor e aprofundar mais como ele tem feito isso e o que pode significar para nós.

 

1 – A Igreja e um novo mundo possível

Apesar de que, em seus inícios, a Igreja Católica esteve na própria inspiração e organização dos fóruns – através de Francisco Whithaker, a Comissão Justiça e Paz da CNBB foi uma das promotoras e organizadoras dos primeiros fóruns – o fato é que em suas bases e mesmo no seu conjunto, a Igreja Católica e também outras Igrejas assumiram muito pouco o processo dos fóruns. Isso teve um aspecto positivo de que o fórum é totalmente laical e não ligado a nenhuma religião. Do outro lado, revela um modelo de Igreja autocentrado e pouco sensível ao fato de que o grito “por um outro mundo possível” é, de certa forma, a mesma proposta dos profetas bíblicos e de Jesus de Nazaré: da vinda do reinado divino ou do programa que Deus tem para o mundo.

Ao propor “uma Igreja em saída”, o papa Francisco retoma essa intuição e a concretiza mais e mais ao insistir na opção prioritária pelos pobres e ao fazer os gestos que faz de comunhão com os migrantes e refugiados do mundo, assim como de simpatia com todas as minorias.

Na sua iniciativa de convidar a Roma ou a Cochabamba os representantes de movimentos sociais, e ele já fez três encontros, ele desloca o centro do seu discurso e de suas preocupações dos temas internos da Igreja para as preocupações de justiça para todos e inclusão social. Ele propõe como eixos de luta os três T:

  • terra;
  • trabalho;
  • e teto.

E na semana passada, na Universidade de Bolonha, propôs os três direitos a serem garantidos para todo ser humano:

  • o direito à cultura;
  • o direito à esperança;
  • e o direito à Paz.

E contra seus adversários que o acusavam de profanar a catedral de Bolonha por ter feito da catedral o refeitório no qual almoçou com mais de mil pobres e migrantes da cidade, ele reabilitou o famoso cardeal Lercaro ao citar a frase que foi a provocadora da crise entre Lercaro e o Vaticano:

“A Igreja tem ser mobilizada pela paz. Ela não pode deixar de proclamar: A vida nunca é neutralidade e sim profecia”.

Além disso, atualmente, o papa é o único líder mundial com credibilidade moral que prioriza como critério civilizatório e urgência para toda a humanidade o cuidado com a criação (Laudato si‘).

 

2 – A fragilidade de um papa contestado na própria Igreja

Cada vez mais alguns grupos católicos tradicionais, como também membros da hierarquia têm se posicionado abertamente contra as posições, palavras e propostas do papa Francisco. A quase cada dia, em jornais da Itália, aparecem duras críticas ao papa. Na época da sessão do Sínodo sobre a família, quatro cardeais se pronunciaram com críticas e reservas ao papa. Recentemente, em setembro, o mundo inteiro ficou sabendo da carta assinada por 79 pessoas de todo o mundo, acusando o papa de heresia. O próprio Cardeal Muller, antigo presidente da Congregação da Doutrina da Fé, afirmou que o papa não sabe teologia e agora começa a acusá-lo de marxismo.

Aqui no Brasil, alguns irmãos e irmãs teólogos/as, bem mais sábios do que eu, têm escrito sobre isso. Com toda razão, chamam a atenção para o fato de que

esses católicos tradicionalistas proclamam a fidelidade ao papa como sucessor de Pedro quando é um papa com o qual eles ideologicamente concordam. Quando o papa é Francisco e toma posições que interpelam o mundo inteiro e à própria Igreja sobre temas fundamentais como a pobreza, a abertura ao mundo e a misericórdia, eles se dão o direito de proclamar o seu dissenso e falar mal do papa.

Essa realidade é grave por vários motivos. Em primeiro lugar, pelo fato de revelar a distância entre a Igreja hierárquica e a proposta evangélica do reino de Deus e a bem-aventurança dos pobres. Em segundo lugar, porque dificulta um processo de reforma eclesial que seria urgente e fundamental, além de mostrar a força imobilizadora do Vaticano como estrutura de governo. Além disso, esse tipo de oposição dentro da Igreja Católica toma uma importância grave não só para dentro da Igreja. Essa dissensão enfraquece a luta social e política por um outro mundo possível. Divide grupos e organizações que deveriam estar todos juntos na luta pelas mesmas causas políticas e eco-sociais.

Cabe ainda outra observação: Ainda é minoritário o grupo de leigos, padres e bispos que protestam contra o papa. No entanto, por trás deles, tem um número bem maior de eclesiásticos que se sentem desconfortáveis e não falam o mesmo idioma social do papa. Esperam simplesmente que, com o passar do tempo, volte o inverno eclesial ao qual estavam habituados e no qual mantêm seu poder sagrado.

Tudo isso é lamentável. Temos de nos colocar solidários ao papa Francisco e trabalhar para que suas propostas cheguem às bases. No entanto, talvez possamos olhar na contramão dos sinais e tentar ler algo de positivo em todo esse processo.

Ao responder com palavras mas nunca ameaçar, nem tomar qualquer posição repressiva em relação aos seus críticos e detratores, o papa Francisco faz um grande bem à Igreja. Abre um caminho novo ou um modo novo de exercer a autoridade na Igreja.

É verdade que nos anos 60, algumas vezes o papa João XXIII e depois o Paulo VI afirmaram que nunca mais a hierarquia usaria os meios de repressão e sim a linguagem do amor misericordioso. Apesar dessas afirmações contidas em alocuções e mesmo em documentos oficiais desses papas, dois de seus sucessores retomaram a tradicional prática da repressão canônica e da exclusão das pessoas. Centenas de teólogos/as e pastores sofreram na pele as consequências pesadas por terem feito quaisquer críticas e propostas. Mesmo que não contradissessem, simplesmente por se diferenciar das palavras vindas do chefe, eram punidos/as e isolados/as. Agora, ao aceitar naturalmente críticas e dissensões, o papa Francisco dá um passo fundamental: ajuda a Igreja de Roma e as Igrejas locais da comunhão católica a viverem a catolicidade de forma nova em um mundo plural.

Desculpem-me os irmãos e irmãs que ainda veem o ministério do papa na forma tradicional. Não quero chocar ninguém, nem propor nenhuma revolução na fé, mas acredito que, contraditoriamente, ao contestar abertamente o papa, esses grupos tradicionalistas prestam um importante e positivo trabalho para a renovação da Igreja Católica. Uns chamam o papa de herege e outros o acusam de comunista. Fazem o que nem os teólogos da libertação latino-americana, nem os teólogos do pluralismo religioso da Ásia ousaram fazer: desmitificar o ministério do bispo de Roma[1]. A maioria dos cristãos católicos e mesmo os de Igrejas evangélicas históricas reconhecem o primado do bispo de Roma e sabem que, desde séculos antigos, a tradição atribui ao bispo de Roma a figura de “sucessor” de Pedro. Atualmente, a maioria dos exegetas sabe que não se pode deduzir dos textos bíblicos (“Tu és Pedro”- Mateus 16, 18), o primado de Pedro e menos ainda uma autoridade de quem lhe sucedesse. Além disso, conforme dados históricos, o primeiro bispo do qual se têm notícias em Roma é Víctor com quem Irineu de Lyon discutiu a unificação da data da Páscoa entre Oriente e Ocidente – (180 D. C). No entanto, isso em nada diminui a importância para as Igrejas do ministério petrino. É importante que a Igreja de Roma e o seu bispo, coletivamente, exerçam essa missão de unidade no conjunto do Cristianismo.

Quanto à forma e ao estilo do papado, o próprio João Paulo II pediu aos cristãos de outras Igrejas que o ajudassem a descobrir como transformar (Ut unun sint, 96). Mesmo sem ter essa intenção e até com a proposta contrária, os tradicionalistas, ao contestar abertamente o papa, mostram um caminho que retoma a atitude crítica do apóstolo Paulo que contestou abertamente a Pedro (Gl 2, 1ss), Cipriano de Cartago que, no século III, teve de escrever a Estêvão, bispo de Roma: “Você não é um super-bispo porque, na Igreja, não existem super-bispos[2]. “Cipriano acreditava que todos os bispos da Igreja são iguais, como eram os apóstolos”[3]. No século IV, São Basílio, bispo de Cesareia, “recusou-se a reconhecer o bispo de Roma como juiz supremo da Igreja universal, embora aceitasse que tivesse uma autoridade própria em campo doutrinal”[4]. Ambrósio, como bispo de Milão, ainda podia afirmar: “Desejo estar unido à Igreja Romana, mas ela deve lembrar que nós também temos raciocínio e juízo, assim como também somos dotados de razão humana. Eles têm costumes litúrgicos e teológicos e os justificam pelas melhores razões. Nós também mantemos os costumes que nos são próprios, pelas melhores razões”[5].

Seria bom pensar quantos bispos católicos de hoje se expressariam nesses termos com relação ao poder do papa e dos bispos. Se os tradicionalistas começam…, mesmo que seja com argumentos e posições com os quais não estamos de acordo, pode não ser tão negativo. Se os ventos da instituição eclesiástica católica não mudam, amanhã, quando tivermos de receber como bispo de Roma, João Paulo III ou Bento XVII, vai ser difícil aos cardeais Muller do momento nos chamar de desobedientes e cismáticos. Por outro lado, todos sabemos que a profecia nunca conviveu bem com unanimidade. Todos os profetas e profetizas sofreram marginalização. O que é novo agora é que isso acontece quando o profeta, por acaso, é um papa.

 

3 – Perspectivas novas para a altermundialidade

Se é verdade que esse movimento de união de toda a sociedade civil por um outro mundo possível nasceu em Chiapas com os índios (1994) e tomou sua forma em Porto Alegre, no sul do mundo (2001), é verdade também que, agora, o papa Francisco abre o próprio Vaticano a esse movimento e com isso indica ao movimento uma fisionomia renovada.

  1. Mesmo sem citar isso, ajuda a Igreja a se dar conta de que no seu DNA, há um quê de assembleia alternativa e altermundialista (ekkesia era o nome da assembleia de cidadãos das cidades de cultura grega que Paulo conheceu).
  2. O papa tem reforçado a consciência da sociedade civil de que o foco do poder está na economia e de que os políticos são apenas instrumentos a serviço dos seus patrões – as grandes corporações econômicas e transnacionais. O papa tem denunciado essa ditadura do dinheiro com todas as letras. O que parece ainda frágil é a metodologia de como combatê-la.
  3. Apesar de que os tradicionalistas e setores de direita o acusam de comunista, o papa Francisco deixa claro que não aceita o Socialismo, ao menos como ele tem sido conhecido, como proposta. Nem mesmo usa os termos de teologia da libertação. Sua proposta social e política aponta muito mais na direção do que os índios da América Latina estão chamando de Bem-Viver. Já afirmei e repito, o papa é o único líder de projeção internacional e de credibilidade moral que prioriza a ecologia integral como projeto civilizatório e caminho de toda a humanidade. Deveríamos aprofundar bem mais esse caminho novo e latino-americano.
  4. Uma lacuna ou fragilidade do processo dos fóruns sociais é que até aqui a coordenação internacional dos fóruns não parece ter dado muita atenção ou importância ao diálogo entre as religiões e à sua participação no processo de relacionamento entre os povos e nos seus conflitos. Mesmo se não concordamos com a tese de Fukuyama sobre o conflito de civilizações, vemos a gravidade do uso fundamentalista das religiões para a continuidade do processo de guerras e conflitos no Oriente Médio, na África, no sul da Índia e em outras partes do mundo. Desde que assumiu o ministério de bispo de Roma, Francisco tem apontado para um novo tipo de Ecumenismo. Ele que fala em “Igreja em saída” tem vivido e proposto um “ecumenismo em saída”. Mais do que incentivar visitas aos patriarcas e chefes de outras Igrejas, ele os têm envolvido em suas viagens missionárias, com o patriarca Bartolomeu a Jerusalém, ao arcebispo-primaz da comunhão anglicana ao Egito e assim por diante… Com Francisco, o dia de oração inter-religiosa pela paz em Assis tomou outra dimensão, inclusive com a colaboração de intelectuais como Zigmunt Bauman e outros. Na Laudato si’, ele propõe uma aliança da humanidade e das religiões em defesa da natureza e de uma ecologia integral (L.S 209 ss). Na América Latina, desde 1992, falamos em “macro-ecumenismo”, o ecumenismo de todos/as que caminham e trabalham para o testemunho e a realização do projeto divino no mundo. No entanto, isso nunca foi aceito pela hierarquia e nem reconhecido pelas academias teológicas. Agora, é o papa que aponta essa direção…
  5. Acima de tudo e principalmente, Francisco tem insistido na relação direta e próxima com as bases e especialmente com os mais empobrecidos. É claro que isso está implícito na base das organizações que se reúnem em qualquer fórum social. No entanto, cada vez mais e nos tempos mais recentes, essa base implícita tem se tornado implícita demais. Mesmo correndo certo risco do “populismo” ou de parecer basista, o papa tem sempre acentuado a relação direta com os pobres e não apenas o lutar por seus interesses, mas sem relação concreta. No domingo de setembro em que almoçou com mais de mil pobres e migrantes na Catedral de Bolonha, ele disse com emoção: “Quero carregar os olhos de vocês nos meus olhos e o coração de vocês no meu coração”[6].

Em conclusão:

É possível que essas indicações que recebemos do papa nos ajudem a firmar não apenas um processo que é bom e útil de sessões do Fórum Social Mundial (do qual a 14ª edição será em Salvador em março), mas caminhar na direção de um Fórum Permanente da Humanidade pela Paz, Justiça e comunhão com a Mãe-Terra.

 

Notas:

[1] É certo que Hans Kung escreveu um livro sobre isso (tradução italiana L’Infabillità, Ed. Mondatori, 1977) e, junto a outros teólogos têm criticado o dogma da infalibilidade papal.

[2] ULRICH KUHN, vocábulo Igreja in JEAN-YVES LACOSTE ET ALII, Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo, Ed. Paulinas e Loyola, 1998, p.855.

[3] TIM DOWLEY (Organizador), Storia del Cristianesimo, Torino, Ed. Elle di Ci, 1992, p. 93.

[4] TIM DOWLEY (Organizador), Storia del Cristianesimo, Torino, Ed. Elle di Ci, 1992, p. 175.

[5] Cf. AMBROISE DE MILAN, De Sacramentis, III, 1, 5. Sources Chrétiennes, 25 bis, Cerf, Paris, 1980, p. 95, 5.

[6] Ver reportagem correspondente no www.ihu.org.br.

(Grifos e destaques da equipe executiva do Observatório)

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Marcelo Barros é monge beneditino, escritor e teólogo brasileiro. Em 1969 foi ordenado padre por Dom Helder Camara e, durante quase dez anos, de 1967 a 1976, trabalhou como secretário e assessor de Dom Hélder para assuntos ecumênicos. É um dos três latino-americanos membros da Comissão Teológica da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), que reúne teólogos da América Latina, África, Ásia e ainda minorias negras e indígenas da América do Norte.

 

 

Fonte:

IHU

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