Pe. Benedito Ferraro faz memória da caminhada das CEBs e lança um olhar prospectivo e esperançado diante dos atuais desafios eclesiais. Vale a pena conferir…
As Comunidades Eclesiais de Base e a opção pelos pobres
As Comunidades Eclesiais de Base nascem no Brasil e na América Latina e Caribe no final da década de 1950 e início da década de 1960, pelo impulso do Espírito, e se apresentam como um processo significativo para a Igreja Católica, para as outras Igrejas Cristãs [Verbete: ecumenismo na vivência das CEBs: Cláudio de Oliveira Ribeiro ou Marcelo Barros] e também para toda a sociedade.
Esta consciência de uma nova experiência eclesial própria da América Latina e Caribe se expressa no tema do 1º Encontro Intereclesial de CEBs: Uma Igreja que nasce do povo pelo Espírito de Deus (Vitória-ES – 6-8 jan 1975). Este processo pode ser considerado histórico e veio para ficar.
Teologicamente, foi cunhado como eclesiogênese [Verbete Eclesiogênese: Leonardo Boff ou Francisco Aquino Júnior]: uma nova experiência eclesial, um renascer da própria Igreja e, por isso mesmo, uma ação do Espírito no horizonte dos sinais dos tempos preconizado pelo Concílio Vaticano II. Em se tratando de um processo de longo fôlego, torna-se necessário retomar a história desta caminhada.
1. Um pouco de história das CEBs no Brasil
As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) surgem na conjuntura da sociedade contemporânea que produziu uma atomização da existência, um anonimato geral das pessoas e uma fragmentação em praticamente todos os níveis da convivência humana, devido aos desafios vindos de uma sociedade globalizada e urbanizada onde a vivência comunitária parecia não ter mais espaço para existir. Como reação a este fenômeno, há uma tendência de se retomar as relações primárias entre as pessoas e buscar relacionamentos de reciprocidade. As CEBs representam esta reação no interior da/s Igreja/s.
1.1 Gênese das CEBs
a) Gestação
Houve um longo período de preparação do terreno para o aparecimento das CEBs. Entre outros elementos destacamos a experiência da catequese popular (movimento catequético), a contribuição da Ação Católica Brasileira, que assume o modelo belga, francês e canadense da Ação Católica especializada (JAC – Juventude Agrária Católica; JEC – Juventude Estudantil Católica; JIC – Juventude Independente Católica; JOC – Juventude Operária Católica; JUC – Juventude Universitária Católica), o Movimento de Educação de Base (MEB), o Movimento por um Mundo Melhor (MMM), os diferentes Planos de Pastoral da CNBB (Plano de Emergência – 1962, Plano de Pastoral de Conjunto – 1966), contando ainda com o Movimento Bíblico que busca novas formas de interpretação da Palavra de Deus, e o Movimento Litúrgico na Europa e também no Brasil. Este processo possibilitou que o terreno fosse amainado para o surgimento das Comunidades de Base.
b) Nascimento
Podemos localizar o nascimento das CEBs no final da década de 1950 e início da década de 1960. Elas surgiram em vários lugares do Brasil e em muitos países da América Latina e do Caribe, no campo e na cidade.
c) Batismo
O batismo das CEBs se deu com Medellín (1968). Inicialmente eram chamadas de Comunidades Cristãs de Base:
Assim, a comunidade cristã de base é o primeiro e fundamental núcleo eclesial, que deve, em seu próprio nível, responsabilizar-se pela riqueza e expansão da fé, como também pelo culto que é sua expressão. É ela , portanto, célula inicial de estruturação eclesial e foco de evangelização e atualmente fator primordial de promoção humana e desenvolvimento (Medellín, 15.11).
d) Confirmação
A confirmação se deu em Puebla (1979), mas antes as CEBs já haviam encontrado sua legitimidade na palavra do magistério universal na Evangelii Nuntiandi, n.58: “(…) São solidárias com a vida da mesma Igreja e alimentadas pela sua doutrina e conservam-se unidas aos seus pastores”. O Documento de Puebla assim se expressa: “As comunidades eclesiais de base que em 1968 eram apenas uma experiência incipiente amadureceram e multiplicaram-se sobretudo em alguns países. Em comunhão com seus bispos e como o pedia Medellín, converteram-se em centros de evangelização e em motores de libertação e de desenvolvimento” (Puebla, n.97; cf. também n.641-642).
e) Maturidade
A maturidade das CEBs pode ser compreendida em três momentos:
O primeiro se dá com o Documento da CNBB (1982): “Fenômeno estritamente eclesial, as CEBs em nosso país nasceram no seio da Igreja-instituição e tornaram-se ‘um novo modo de ser Igreja’. Pode-se afirmar que é ao redor delas que se desenvolve, e se desenvolverá cada vez mais, no futuro, a ação pastoral e evangelizadora da Igreja” (CNBB, Doc.25, n.3).
O segundo momento acontece com o VI Encontro Intereclesial das CEBs, em Trindade-Go (1986), onde se cunhou a expressão “CEBs: Um modo novo de toda a Igreja ser”. Visava-se, com tal expressão, mostrar que o espírito das CEBs deveria fermentar toda a instituição eclesial a partir da opção pelos pobres. As CEBs constituem-se num elemento-chave para a vida eclesial no Brasil e apontam para um novo modelo eclesial. Encontramo-nos aqui com o papel protagônico das CEBs em vista de um novo paradigma de organização eclesial.
O terceiro momento pode ser compreendido a partir da feliz expressão de D. Pedro Casaldáliga – “CEBs: O modo normal de toda a Igreja ser”. Esta expressão quer significar que as questões fundamentais defendidas pelas CEBs devem ser assimiladas por toda a Igreja-instituição, pois fazem parte da defesa da vida. Por detrás desta vivência está presente a intuição do Vaticano II, sobretudo da Gaudium et Spes (GS, n.1 e 11). Nesta mesma direção, as CEBs são consideradas como instância primeira da Igreja, são sua expressão originante (At 2,42-47; 4,32-35). Dirigindo-se aos participantes do XIII Encontro Intereclesial, o Papa Francisco afirma que
Como lembrava o Documento de Aparecida, as CEBs são um instrumento que permite ao povo “chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé dos adultos” (n.178). E recentemente, dirigindo-me a toda a Igreja, escrevia que as Comunidades de Base “trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam a Igreja (Exort. Ap. Evangelii Gaudium, n.29).
2 A grande novidade da Igreja na América Latina e Caribe: a entrada (inserção) dos cristãos e cristãs na luta política de libertação dos pobres e excluídos
Para se compreender este novo modo de ser Igreja, é preciso recordar o assumir da opção pelos pobres e excluídos, que é uma das marcas da Igreja na América Latina e no Caribe (cf. Aparecida, n.391). A opção pelos pobres está também na base da Teologia da Libertação. Ela aparece de modo latente durante o Vaticano II, especialmente no Pacto das Catacumbas (Verbete Pacto das Catacumbas – José Oscar Beozzo) e, também de modo especial, a partir de Medellín (1968), Puebla (1979) e, mais recentemente, em Aparecida (2007), gerando uma intensa discussão com muitas tensões, incompreensões e tentativas de amortecer suas implicações práticas. Esta opção pelos pobres, expressa na década de 1960, tem suas raízes na Bíblia. Na caminhada das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), esta compreensão está explicitada no canto: “Javé, o Deus dos pobres, do povo sofredor, aqui nos reunimos para cantar o seu louvor. Pra nos dar esperança e contar com sua mão, na construção do Reino, Reino novo, povo irmão”. No livro do Êxodo, Deus se mostra como libertador, agindo na história: “Eu vi, eu vi miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa de seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel” (Êx 3,7-8b). Esta tradição do Deus libertador se expressa na profissão de fé do povo libertado: “Eu sou Iahweh teu Deus que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão” (Êx 20,2). Gustavo Gutiérrez afirma que a opção pelos pobres é teocêntrica, isto é, sai do coração amoroso de Deus: “É uma opção teocêntrica e profética que deita as raízes na gratuidade do amor de Deus e é exigida por ela” (GUTIÉRREZ, 2000, p.25).
A opção pelos pobres tem estado no cenário da Igreja da América Latina e do Caribe durante as últimas décadas. Na Conferência de Aparecida ela volta com maior intensidade, novo aprofundamento e novas exigências frente ao novo contexto sócio-histórico. Bento XVI afirma que a opção pelos pobres está implícita na fé cristã e faz parte integrante do discipulado como seguimento de Jesus Cristo: “Nossa fé proclama que ‘Jesus Cristo é o rosto humano de Deus e o rosto divino do ser humano’” (Aparecida, n.392). Por isso “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, enriquecendo-nos com sua pobreza. Esta opção nasce de nossa fé em Jesus Cristo, o Deus feito humano, que se fez nosso irmão (cf. Hb 2,11-12)” (Aparecida, n.392). Bento XVI afirma que o Deus revelado em Jesus de Nazaré é “o Deus de rosto humano; é o Deus-Conosco, o Deus do amor até a cruz” (Bento XVI, Sessão Inaugural dos Trabalhos da V Conferência em Aparecida, 2007). Interessante observar que essa afirmação do Papa se aproxima do canto das CEBs: “Tu és o Deus dos pequenos, o Deus humano e sofrido, o Deus de mãos calejadas, o Deus de rosto curtido. Por isso te falo eu, como te fala meu povo, porque és o Deus roceiro, o Cristo trabalhador” (Missa Campesina Nicaraguense) . Aproxima-se também da afirmação de Puebla n.31-39, retomada pela Conferência de Aparecida, n.392-393 e assumida também pelo papa Francisco: “Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica (…) A Igreja fez uma opção pelos pobres, entendida como uma ‘forma especial de primado na prática da caridade cristã, testemunhada por toda a Tradição da Igreja’” (EG, n.198). Ao assumir o dinamismo missionário da Igreja, o papa Francisco afirma que “hoje e sempre os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho, e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rodeios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos!” (EG, n.48).
Seguindo a reflexão de Gustavo Gutiérrez que afirma ser teocêntrica a opção pelos pobres, podemos pensá-la como opção trinitária. A opção pelos pobres é uma opção de Deus Pai (cf. Êx 3,7-10; 20,2; Mt 11,25-26), do Filho, Jesus de Nazaré (Lc 4,16-21) e do Espírito Santo que envia Jesus para o meio dos pobres (Lc 4,18-19). É interessante notarmos que na sequência da missa de Pentecostes, o Espírito Santo é proclamado como Pai dos Pobres (Pater Pauperum)! Esta opção é também mariológica e é assumida por Maria, a Mãe de Jesus (Lc 1,46-56). Esta opção é bíblica e evangélica e foi belamente descrita por Dona Luzia de Itumbiara-Go, ao dizer: “A Bíblia é o livro dos pobres, escrito para os pobres, dizendo para os pobres: chega de pobreza!”.
A opção pelos pobres continua sendo a pedra de toque da Igreja: “A opção pelos pobres é uma das características que marca o rosto da Igreja latino-americana e caribenha” (Aparecida, n.391). É a partir dela que se definem os modelos de Igreja. Certamente esta é a razão dos inúmeros conflitos no interior da própria instituição eclesial, pois ela exige um novo paradigma de organização eclesial diferente dos modelos existentes anteriormente, assim como também aponta para um novo modelo de sociedade. Neste sentido, os pobres se tornam os novos sujeitos eclesiais e também os novos sujeitos sociais. Na medida em que acreditamos nos pobres como sujeitos e protagonistas de sua própria libertação, compreendemos também a importância do diálogo ecumênico que abre possibilidades do testemunho comum e do diálogo inter-religioso [Verbete Diálogo inter-religioso = Faustino Teixeira] na construção da nova humanidade. Diante da realidade de pobreza que vive a grande maioria dos jovens latino-americanos e caribenhos, entende-se também o valor da opção pelos pobres assumida pelos próprios jovens (cf. Aparecida, n.446,e). Frente à dura realidade de miséria, pobreza gerada pela injustiça social, assume-se também a opção pelos pobres na defesa da ecologia, pois quem mais sofre com a devastação da “nossa irmã mãe terra” são os pobres, especialmente as mulheres, os camponeses e indígenas. Podemos também verificar, à luz da opção pelos pobres, todo o anseio por mudanças que estamos percebendo na América Latina e Caribe. Os pobres eram invisibilizados, mas hoje estão se fazendo presentes em vários países latino-americanos e caribenhos e indicam a necessidade de mudanças estruturais, como também a possibilidade de um outro mundo possível, para que haja vida e vida abundante para todos os seres humanos e também vida para toda a natureza.
2.1 Entrada nas pastorais sociais, nos movimentos populares, sindicais, partidos políticos, movimento ecológico
As pastorais sociais, fruto do engajamento dos cristãos e cristãs na concretização da opção pelos pobres, colaboram na compreensão do engajamento político, na importância de uma Igreja comprometida com as lutas populares e iniciam o processo de cidadania nas comunidades. Este processo se dá pela ligação das pastorais sociais com os movimentos sociais populares. A partir da pastoral da saúde abre-se a possibilidade de participação nos conselhos de saúde local, municipal, estadual. Assumindo a pastoral da terra (CPT), os cristãos e cristãs tem a possibilidade de participar do Movimento dos Sem Terra (MST). Participando da Pastoral Operária (PO), há a abertura para a participação nos sindicatos. Estando na pastoral carcerária, abre-se a possibilidade de participação no Movimento Nacional de Direitos Humanos, Anistia Internacional, de relacionamento com o Ministério Público. Da pastoral da Mulher Marginalizada (PMM) entra-se no movimento da mulher, tem-se abertura para a Marcha Mundial das Mulheres. Ao participar da Pastoral da Criança, vislumbra-se a participação nos conselhos da criança e do adolescente, como também no conselho tutelar. Da pastoral de fé e política, ética e política, abre-se o horizonte para a participação nos partidos políticos. Desta mesma forma, podemos ver a participação de cristãos e cristãs das CEBs na Semana Social Brasileira, no Grito dos Excluídos, nas romarias da Terra e das Águas, nas romarias dos trabalhadores/as.
Em nome da fé, os cristãos e cristãs saídos das CEBs assumem e apoiam as lutas dos movimentos populares, dos povos indígenas, dos negros, das mulheres. Participam dos movimentos ecológicos. À luz do Ensinamento Social da Igreja, participam do movimento sindical, dos partidos políticos ligados aos interesses da classe trabalhadora e, em alguns casos específicos, frente à violência institucionalizada (Medellín, n.16) e ao pecado social(Puebla, n.28), há a recorrência à luta armada em alguns países da América Latina e Caribe.
2.2 Ligação Fé e Vida
As CEBs utilizam o método Ver, Julgar e Agir advindo da Ação Católica e referendada por João XXIII na Encíclica Mater et Magistra (MM, n.235-236). Esse método está presente nas Conferências do Episcopado Latino-americano e Caribenho desde Medellín (1968) até Aparecida (2007) e sempre presente nos Documentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). É a partir desta ligação que houve uma nova experiência da vivência da fé que gera um novo modelo eclesial e uma nova forma de fazer teologia. Gustavo Gutiérrez relata de forma magistral esta articulação entre a inserção dos cristãos e cristãs na luta de libertação dos pobres e excluídos e este novo modo de viver, transmitir e celebrar a fé.
A inserção nas lutas populares pela libertação tem sido – e é – o início de um novo modo de viver, transmitir e celebrar a fé para muitos cristãos da América Latina. Provenham eles das próprias camadas populares ou de outros setores sociais, em ambos os casos observa-se – embora com rupturas e por caminhos diferentes – uma consciente e clara identificação com os interesses e combates dos oprimidos do continente. Esse é o fato maior da comunidade cristã da América Latina nos últimos anos. Esse fato tem sido e continua sendo a matriz do esforço de esclarecimento teológico que levou à teologia da libertação (GUTIÉRREZ, 1981, p.245).
A ligação fé e vida, incluindo nesta ligação a relação da fé com a economia, a política, a cultura e a ecologia, aponta que o horizonte da libertação se amplia enormemente, exigindo uma libertação econômica, política, cultural, pedagógica, erótico-sexual, ecológica (DUSSEL, 2011) e revela também a ligação entre evangelização e libertação presente no Vaticano II: “Trabalhem os cristãos e cristãs e colaborem com todos os outros para estruturar com justiça a vida econômica e social” (Ad Gentes, n.12; cf. Ad Gentes, n.21) e confirmada pela Evangelii Nuntiandi de Paulo VI: “A evangelização não seria completa se ela não tomasse em consideração a interpelação recíproca que se fazem constantemente o Evangelho e a vida real” (cf. EN, n.29). A Evangelii Nuntiandi indica que o compromisso com a libertação em todas as dimensões da vida humana (econômica, política, social, cultural-religiosa) não é alheia à evangelização (cf. Evangelii Nuntiandi, n.30). Ainda confirma que entre evangelização e libertação há laços de ordem antropológica (o ser humano a ser evangelizado não é um ser abstrato, mas condicionado pelo conjunto dos problemas sociais e econômicos), laços de ordem teológica (não se pode separar o plano da criação do plano da Salvação do ser humano), e também laços de ordem eminentemente evangélica (como proclamar o mandamento novo sem promover a justiça, a paz?) (cf. Evangelii Nuntiandi, n.31). As CEBs, pela ligação da fé com a vida, esforçam-se para que a libertação possa abranger todas as dimensões da vida do ser humano, buscando realizar o desejo expresso por Jesus que todos e todas possam ter vida e vida em abundância e também buscam seguir São Paulo, preocupando-se hoje com toda a criação (cf. Rm, 8,22-25). A participação nas lutas acarreta muitas perseguições entre os pobres e entre aqueles e aquelas que, por livre opção, mesmo sendo de outras classes sociais, assumem o lado dos pobres e excluídos. Por isso, em toda a América Latina e Caribe, encontramos mártires que, como Jesus de Nazaré, enfrentam a perseguição e chegam até o extremo do derramamento do sangue. São trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, indígenas, negros e negras, advogados e advogadas, religiosas e religiosos, padres, bispos. Muitos destes/as mártires são saídos das CEBs e expressam a dimensão profética da/s Igreja/s. A entrada dos cristãos e cristãs na luta de libertação dos pobres e excluídos possibilita um novo modo de viver a fé, um novo modo de transmitir a fé e um novo modo de celebrar a fé.
2.2.1 Um novo modo de viver a fé
À luz do Concílio Vaticano II, os cristãos e cristãs das CEBs, movidos pelo Espírito do Ressuscitado, preocupam-se com os problemas da vida em sociedade e também com os problemas relacionados com a natureza, descobrindo que “as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e angústias dos discípulos de Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração” (GS, n.1). Com esta espiritualidade, a vivência da fé exige dar resposta às necessidades em todas as dimensões da vida humana.
2.2.2 Um novo modo de transmitir a fé
Com a fé relacionada a todas as necessidades humanas, a Palavra de Deus (Bíblia) começa a ser lida com uma maior complexidade, buscando dar respostas às questões da vida a partir da leitura feita pelos pobres (relação de classe), pelas mulheres (relação de gênero), pelas diferentes culturas (relação étnica), a partir das crianças, adolescentes, jovens, anciãos (relação de geração) e, também iluminados pela teologia da criação, faz-se uma leitura da Bíblia a partir da defesa da vida da natureza (relação ecológica). É no bojo de todas essas leituras que vai surgindo também um novo modo de teologizar (Teologia da Libertação), como também uma nova catequese com uma dimensão martirial.
2.2.3 Um novo modo de celebrar a fé
A ligação fé e vida faz com que a liturgia seja vivida e se expresse a partir das diferentes culturas e celebre as lutas em defesa da vida, assumindo as expressões culturais do povo. Como afirma o papa Francisco, “natureza e cultura encontram-se intimamente ligadas. A graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe” (EG, n.115).
3 Desafios para as CEBs no início do Século XXI
A caminhada das CEBs, ao longo desse processo histórico, tem sido marcada por enfrentamentos e conflitos tanto no interior da Igreja como no seio da sociedade. No interior da Igreja, nota-se o confronto entre modelos de Igreja e a base deste confronto está na interpretação dada aos documentos do Concílio Vaticano II. As CEBs tem um papel protagônico na perspectiva de um novo modelo eclesial que assume a eclesiologia do Povo de Deus presente no Concílio. Nesta busca de um novo modelo eclesial, surgem conflitos e perseguições. No seio da sociedade, as CEBs se articulam, em praticamente todos os países da América Latina e Caribe, com as forças populares que apontam para um novo modelo de sociedade, na busca de um outro mundo possível e urgente, como tem proclamado o Fórum Social Mundial. [Verbete Fórum Social Mundial = Francisco Witacker]. Esta busca por outro modo de organização da vida em sociedade entra em confronto com o neoliberalismo ainda muito presente em países latino-americanos e caribenhos, acarretando conflitos e perseguições que podem levar ao martírio. Deste modo, as Cebs são chamadas a fortalecer sua caminhada, neste novo momento eclesial em que o papa Francisco, em sua Mensagem às CEBs por ocasião do 13º. Intereclesial, afirma que “as CEBs são um instrumento que permite ao povo ‘chegar a um conhecimento maior da Palavra de Deus, ao compromisso social em nome do Evangelho, ao surgimento de novos serviços leigos e à educação da fé dos adultos’ (Aparecida, n.178). E recentemente, dirigindo-me a toda a Igreja, escrevia que as Comunidades de Base ‘trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de diálogo com o mundo que renovam a Igreja’ (Exort. Ap. Evangelii Gaudium, n.29)”. As CEBs procuram manter os pontos essenciais para a construção de um novo modelo eclesial e de um novo modelo de sociedade que tenham as marcas do Reino de Deus anunciado por Jesus de Nazaré.
a) Manutenção da opção pelos pobres
Diante da vulnerabilidade presente em nossa sociedade e frente ao neoliberalismo, a opção pelos pobres é fundamental para a resistência dos povos e defesa da vida.
b) Teologia da Libertação
A Teologia da Libertação é também fruto da opção pelos pobres e necessita de novos aprofundamentos diante das novas exigências do momento histórico atual, buscando dar respostas para as questões relacionadas com as culturas, a bioética, a sexualidade, a ecologia.
c) Ministérios e a presença da mulher na Igreja e nas CEBs
Há uma presença majoritária de mulheres nos serviços e coordenações nas CEBs, mas há uma contradição entre a proclamação da igualdade e a realidade de desigualdade nas relações entre homens e mulheres no seio das Igrejas cristãs, mas especialmente no seio da Igreja católica, onde a mulher, por ser mulher, não pode assumir determinadas tarefas e postos de decisão, contrariando o princípio do sacerdócio comum dos fiéis.
d) O diálogo inter-religioso e a luta pela defesa da vida e da natureza
Este desafio é o de todas as Igrejas e de todas as religiões, pois não haverá paz no mundo, se não houver paz entre as religiões (Hans Küng, 2004).
Concluindo…
As CEBs são uma invenção do Espírito Santo: “Uma Igreja que nasce do povo pelo Espírito de Deus” (I Intereclesial – Vitória, 1975). Elas traduzem uma nova experiência eclesial a partir dos países latino-americanos e caribenhos, alicerçada no sangue de muitos mártires que seguiram Jesus no compromisso com a justiça e com a vida plena para todos e todas.
As CEBs têm contribuído em vários países da América Latina e do Caribe na transformação da sociedade, gestando lideranças nos mais diferentes espaços de participação política. São sementeiras de agentes de transformação.
As CEBs, com um papel protagônico, têm colaborado na mudança do rosto das Igrejas locais e influenciado as Conferências Episcopais Latino-americanas e Caribenhas na perspectiva de construção de uma Igreja Povo de Deus de acordo com os documentos do Vaticano II.
As CEBs, no seguimento de Jesus de Nazaré, empenham-se na construção de um outro mundo possível e urgente e que antecipe o Reino de Deus na história.
Benedito Ferraro – PUC Campinas
Referências
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