O tema da imagem de Deus, que confessamos e com a qual relacionamos na vivência da fé cristã, tem provocado inúmeras e pertinentes reflexões teológico-pastorais. Ao longo da Bíblia, percebemos uma diversidade de imagens de Deus presente na caminhada do Povo de Israel. O anúncio-testemunho do Reino de Deus pelo Profeta da Galileia, Jesus de Nazaré, e seus discípulos e discípulas preconizava uma nova imagem de Deus. Revela-se, com originalidade, o rosto do Deus-Amor, a quem Jesus chamava de “Abbá” querido, um paizinho amoroso sempre conosco. Há um processo de aprofundamento e de purificação radical na compreensão da auto-revelação de Deus ao seu povo.
Não obstante a revelação de Deus como Pai Nosso, como entender que tantos cristãos concebam e configurem, para si e para os outros, uma vivência da fé cristã tão marcada pelo temor na relação com Deus? Por que a experiência amorosa de Deus não favorece, ao contrário, a superação do medo? Por que muitos desejam conservar intacto um cristianismo maniqueísta, religião do dever e do tremor diante do risco, sempre iminente, de condenação eterna ao fogo do inferno?
Vale a pena ler e deixar-se interpelar pela reflexão de Mauro Lopes brotada da provocação da audiência do papa Francisco:
Papa retoma formulação mais original do cristianismo: Deus só sabe amar
Passou relativamente despercebida, mesmo aos católicos, uma frase que o Papa pronunciou na Audiência Geral da última quarta (7) no Vaticano segundo a qual Deus é “capaz somente de conjugar o verbo amar”. Com ela, Francisco retoma a formulação mais original do cristianismo, esquecida/perdida ao longo de séculos pela Igreja institucional e combatida pelo conservadorismo católico e cristão em geral.
Deus só sabe conjugar o verbo amar
A expressão inspira-se naquela que é a tentativa mais ousada na Bíblia de definir o Divino: “Deus é amor” – a frase aparece por duas vezes na primeira carta de São João (1Jo 4, 8.16).
Deus só pode amar
Este é o título de um pequeno livro escrito pelo irmão Roger, da comunidade ecumênica dos monges da comunidade de Taizé, sediada na região da Borgonha, na França. Ela reúne protestantes, católicos e ortodoxos. Existe desde 1940. No Brasil, há um pequeno núcleo de Taizé em Alagoinhas (BA), há 50 anos. O irmão Roger, um protestante que rompeu todas as falsas barreiras das estruturas religiosas, foi assassinado aos 90 anos, em agosto de 2005, quando uma mulher romena, com distúrbios mentais, apunhalou-o várias vezes durante a oração da noite.
O livro de irmão Roger é uma pequena preciosidade que deveria inspirar pessoas de todos os quadrantes de espiritualidade e mesmo aqueles que, não acreditando na transcendência, tecem a vida pela bondade e pela busca da essência do ser humano[1].
Muito antes de Francisco e irmão Roger, santo Isaac, o Sírio, no século VII, pontuou: “Deus só pode dar o seu amor”.
O filósofo Paul Ricoeur, ele mesmo um frequentador da comunidade de Taizé, escreveu na virada do século sobre a mudança do olhar sobre Deus, da ótica do poder para a do amor:
“O único poder de Deus é o amor desarmado. Deus não quer nosso sofrimento. De todo-poderoso, Deus se torna ‘todo-amoroso’. Deus não tem outro poder que o de amar e de nos dirigir uma palavra de socorro quando estamos sofrendo.” [2]
Esse Deus todo-amoroso, desarmado ou, como disse o Papa, um Pai “bom, indefeso diante do livre arbítrio do homem” não amedronta, pois, como disse são João na mesma carta, “não há temor no amor; ao contrário, o perfeito amor lança fora o medo” (1Jo 4, 18).
Um teólogo ortodoxo, Olivier Clément, escreveu um livro sobre a experiência de Taize[3] anotou com precisão a falsificação da imagem de Deus promovida pelos rigoristas e fundamentalistas com seus dedos apontados, punições, penitências:
“Em Taizé, as pessoas se libertaram completamente da caricatura de um Deus que amedronta, de um Deus que condena, de um Deus que culpabiliza. É uma caricatura terrível, que afasta muitos jovens do mistério de Deus.” [4]
Essa escolha entre Deus-Amor e o deus da culpa está colocada diante de todos os que creem, cotidianamente. Um exemplo que evoca um tema central no mundo hoje em dia: Os católicos conservadores em todo o canto – inclusive no Brasil – estão numa campanha estridente por uma nova Cruzada contra “os infiéis muçulmanos” e mal escondem seu desejo de proibições, sanções e extermínio. Respiram ameaças, ódio e morte (leia um exemplo dentre dezenas que se reproduzem diariamente aqui). Enquanto isso, papa Francisco reza pela paz e busca união, comunhão e amizade com os muçulmanos, como o fez em seu recente e emocionante encontro com o grande Imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayeb no Egito: “Papa em Al-Azhar: somos chamados a caminhar juntos”. Em Taizé, vivenciou-se, no início de maio, o primeiro fim-de-semana de amizade islamo-cristã.
Sim, há sempre uma escolha
Para Francisco e os cristãos que buscam o seguimento nas pegadas de seu Mestre, amor é o nome próprio de Deus[5]. Qualquer apresentação de Deus que se traduza em advertências, punições, proibições, discriminação, condenações a gays, lésbicas, trans, mulheres, divorciados e divorciadas, prostitutas, ateus, comunistas, muçulmanos, protestantes, espíritas, gentes de religiões afro, mulheres que abortam são falsificações de Deus. Não passam de projeções dos recalques e desejos de controle e poder daqueles que condenam, individual ou institucionalmente.
O mesmo Isaac, o sírio, escreveu ao fim da vida sobre as mistificações em torno do diabo e do inferno que nenhuma relação têm com o Deus-Amor:
“Como conceber que Deus cria um inferno, um lugar de aflição, de tortura e de abandono? Deus só pode dar seu amor. Ele dá e dará seu amor: ele será tudo em todos.”[6]
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[1] Roger, de Taizé, Irmão. Deus só pode amar. São Paulo, Paulinas, 2003.
[2] Ricoeur, Paul. Paris. Revista Panorama, nº 340, 1999, p. 29. Citado por Roger, de Taizé, Irmão, in op. cit.
[3] Clément, Olivier. Em busca do sentido da vida. São Paulo, Cidade Nova, 2006.
[4] Idem. P. 93
[5] Boff, Leonardo. A oração de São Francisco. Rio de Janeiro, Editora Sextante, 7ª edição, 1999. P. 73
[6] In Clément, Olivier, op. cit. P. 93-94
(os grifos são nossos)
Mauro Pereira Lopes
Jornalista, psicanalista, poeta e teólogo. É o autor do blog Caminho pra Casa. Trata-se de uma proposta, projeto nunca acabado de apresentar e conversar uma visão sobre a vida, o cotidiano e as questões que me atravessam a partir de um olhar particular -assentado no encontro com o cristianismo, particularmente com a Igreja Católica.
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