Sobre o Documento de Aparecida: as Comunidades como o futuro da revitalização da Igreja

Na celebração do marco de 10 anos do Documento de Aparecida, tão marcante na dinâmica do pontificado de Francisco, vale a pena reler a análise teológico-pastoral daquele que foi um de nossos maiores teólogos pastoralistas.

ENTREVISTA COM JOÃO BATISTA LIBANIO

(Julho/2008)

“Uma das novidades do texto é a importância que atribui às comunidades e vê nelas o futuro da revitalização da Igreja. Tema que atravessa todo o Documento”.

No horizonte, surge o sonho de uma Igreja que se movimenta de dentro de sua fé no amor de Deus em Jesus Cristo, e inspirada pelo Espírito Santo, que leve a todo o Continente mensagem de fé e vida”.

 

Libanio
Foto: LEO DRUMOND / NITRO

1. Quais as principais novidades da V  Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe em relação a Medellín, Puebla e Santo Domingo?
João Batista Libânio –
Há novidades que vêm do evento e outras que se originam dos textos. O evento de Aparecida distinguiu-se de Medellín  pelo fato de que foi um encontro realmente de bispos. Eles mesmos tomaram as decisões da Assembléia e redigiram o texto. O papel dos assessores em Medellín foi decisivo. Depois de Medellín, perdeu muito de relevância para os bispos mesmos assumirem a tarefa. Em relação à Puebla e a Santo Domingo, Aparecida se mostrou mais envolvida com o ambiente. O fato de os bispos participarem da Eucaristia junto com o povo e experimentarem concretamente a religiosidade popular lhes terá feito bem. Em outros encontros, estiveram isolados e enquartelados no recinto dos trabalhos. Além disso, muitos outros acontecimentos entrosaram-se melhor com a Conferência. Houve um Seminário latino-americano de teologia, coordenado pelo Conselho Nacional do Laicato do Brasil, órgão da CNBB, e bem aceito pelo Celam. A Tenda dos mártires  se fez presença estimuladora. A romaria das CEBs e das pastorais mostrou a visibilidade da Igreja da base. A assessoria permanente de teólogos da libertação do Grupo Ameríndia manteve boa relação com a Assembléia, diferentemente de outras Conferências, em que eram mal vistos.

Medellín foi uma Assembléia que rompeu caminho. Puebla e Santo Domingo vieram nas pegadas. Aparecida significou quase uma surpresa. A criação do Sínodo Continental parecia ter assinado decreto de morte a esse tipo de Encontro. E ele aconteceu depois de delicadas tratativas e oposições importantes.

A maneira da presença do Papa variou em cada uma das Assembléias. No Rio, não houve. Pio XII  não viajava. Na Colômbia, praticamente houve a simples viagem de Paulo VI para inaugurar a Conferência, com poucas atividades além do ato de abertura. Em Puebla, João Paulo II, depois de abrir a Conferência, fez longa viagem pelo México, enquanto os bispos trabalhavam. E os discursos do Papa se faziam cada dia mais críticos no campo social, influenciando continuamente o desenrolar dos trabalhos da Conferência. Haja vista o fato de as Conclusões de Puebla citarem mais de 100 vezes a João Paulo II. Em Aparecida, Bento XVI fez os discursos antes de começar a Conferência, de tal modo que os bispos não foram surpreendidos por novas intervenções pontifícias, a não ser por uma audiência em Roma na quarta-feira, 23 de maio, em que comentou a visita ao Brasil, retificando um ponto de sua fala sobre a primeira evangelização do Continente. Quanto às diferenças de conteúdo do texto, aparecerão nas respostas seguintes.

 

2. Quais seriam, de maneira sintética, as três grandes luzes de Aparecida e quais as três grandes sombras?
João Batista Libânio
– Sobre três grandes luzes:

  • Afirmar a relevância da experiência cristã fundamental e fundante: o encontro pessoal com Cristo no interior da comunidade da Igreja. A catequese tradicional concentrara-se sobre o conhecimento teórico, e, às vezes, até mesmo abstrato da fé católica por meio de catequese verbal. Percebendo que tal catequese não oferece garantia para enfrentar os desafios da pós-modernidade que carrega as tintas no lado existencial e afetivo, uma fé racional soçobrava e os evangélicos com pregações impactantes arrastavam, para suas igrejas, os frios católicos.
  • Uma segunda decorre da alegria de ter-se encontrado com o Senhor. De tal experiência, brotam os desejos de segui-lo e anunciar-lhe o Evangelho do Reino da Vida aos povos latino-americanos.
  • E, finalmente, articulando os dois eixos da alegria do seguimento e o do impulso para a missão do católico no seio da Igreja, pensa-se, então, deslanchar ampla mobilização para uma grande Missão Continental. No horizonte, surge o sonho de uma Igreja que se movimenta de dentro de sua fé no amor de Deus em Jesus Cristo, e inspirada pelo Espírito Santo, que leve a todo o Continente mensagem de fé e vida.

Sobre três grandes sombras:

  • As sombras vêm do lado conservadoramente institucional. Até agora, o conjunto dos bispos da América Latina não superou o trauma da libertação, tanto na expressão teológica quanto na constituição de uma Igreja voltada para ela. Pesa estranho silêncio sobre a Teologia da Libertação, como se ela nunca tivesse existido nem tivesse sido uma das contribuições originais da América Latina para o consórcio teológico mundial. O próprio termo libertação aparece poucas vezes, cercado de adjetivos para tirar-lhe qualquer força real concreta.
  • A análise da realidade ressente do doutrinal. Em vez de partir, de fato, de boa análise da realidade, o texto a fez preceder de considerações doutrinais e misturou, na análise, perspectivas doutrinais de tal maneira que não ficou claro que mediações analíticas realmente usou. Produziu um gênero misto entre análise e doutrina. Estranha-se que nem se tenha mencionado o neoliberalismo, sendo atualmente o único sistema imperante com terríveis conseqüências para os países e camadas pobres.
  • Uma outra sombra se origina da incoerência entre a atitude de pôr no centro da vida eclesial a Eucaristia e, ao mesmo tempo, não enfrentar o problema do ministério ordenado masculino celibatário, em vista de que se consigam ministros ordenados suficientes para a demanda de Eucaristia. E no vácuo ministerial da Igreja católica crescem as igrejas evangélicas.

 

3. Considerando a necessidade de se iniciar uma nova etapa pastoral nas atuais circunstâncias históricas, como seria essa nova etapa pastoral?
João Batista Libânio –
O texto vislumbra ampla renovação da vida do católico médio por meio de uma convocação massiva por parte da Igreja institucional. Há certo voluntarismo idealista que espera mudança a partir da consciência das pessoas. Não se percebe bem que estruturas eclesiásticas favoreceriam tal impulso de discipulado missionário além da atual prática pastoral sacramental. O projeto mais detalhado da Grande Missão Continental será trabalhado na próxima Assembléia Ordinária do Celam, em Cuba. Temos que esperar para ver que tipo de iniciativas se farão para marcar essa nova etapa pastoral.

 

4. Uma novidade do documento é a tentativa de revitalizar a vida dos batizados para que permaneçam e avancem no seguimento de Jesus. Como se dá essa revitalização? O que fazer para motivar os batizados na fé católica?
João Batista Libânio –
A revitalização da vida do discípulo missionário parte de um fato primeiro que se traduz na alegria de ser discípulo para anunciar o evangelho do Reino da Vida. Há uma boa notícia que antecede ao cristão, que ele recebe e de que se faz porta-voz convencido. Na base de tal convicção está o encontro com Cristo, que o chama para segui-lo e o envia para o anúncio na força do Espírito Santo. A Igreja, por sua vez, oferece lugares e vocações específicas para viver tal realidade.

E o documento, em seguida, elabora longo capítulo sobre o itinerário formativo dos discípulos missionários em três lanços:

  • parte-se de uma espiritualidade trinitária do encontro com Jesus Cristo;
  • entra-se num processo de formação, indicando os critérios e os passos que vão da iniciação à vida cristã até a catequese permanente.
  • Finalmente, indicam-se os lugares que a Igreja oferece para a formação:
    • família;
    • paróquia;
    • pequenas comunidades eclesiais;
    • movimentos eclesiais e novas comunidades;
    • seminários;
    • instituições educativas.

Um das linhas fortes do documento se manifesta na insistência e relevância das comunidades na vida eclesial.

 

5. Aparecida confirma a opção preferencial pelos pobres e excluídos. De que forma essa opção será posta em prática?
João Batista Libânio –
A opção pelos pobres já se constituiu, como diz o próprio texto, “um dos traços que marca a fisionomia da Igreja Latino-americana e Caribenha”. É algo tão evangélico e arraigado na vida eclesial do Continente que é caminho sem retorno. As motivações teológicas variam. Bento XVI afirma e o documento repete que “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza”. No entanto, o texto quase não avança no nível das mediações por causa do temor de a Igreja imiscuir-se em questões políticas. E o fato de incentivar o leigo não resolve, porque na prática a Igreja se identifica com o clero e este é o protagonista de tudo o que se faz. O Documento imagina que o agir consoante com a opção pelos pobres flua da fé cristológica e daí se faça criativo. As indicações permanecem na proximidade afetiva e existencial com o pobre. Já é algo, sem perguntar-se, porém, pelos movimentos sociais e outras instituições que objetivariam tal opção.

 

6. A partir de Aparecida, o que pensar das CEBs? O documento abre para uma retomada do modelo das CEBs ou este modelo já respondeu a uma época e agora se necessita outro novo modelo?
João Batista Libânio –
Uma das novidades do texto é a importância que atribui às comunidades e vê nelas o futuro da revitalização da Igreja. Trata-se de um tema que atravessa todo o Documento. As CEBs são tais comunidades no meio popular. Embora tenham presença discreta, recebem incentivo. Os bispos reafirmam-nas e dão-lhes novo impulso, reconhecem que elas são sinal de vitalidade da Igreja, instrumento de formação e de evangelização, e um ponto de partida válido para a Missão Continental permanente. Constatam a ambivalência do fato de que em muitos lugares florescem e em outros minguam. No entanto, têm sido verdadeiras escolas que formam discípulos missionários do Senhor.

 

7. O documento fala da formação de leigos para a missão evangelizadora. Em que consiste esta formação?
João Batista Libânio –
Qual refrão que atravessa o Documento Final, tudo começa para o cristão com o Encontro pessoal com o Senhor que o chama para viver, conviver com ele em comunhão de vida e destino. Daí lhe nasce a vocação de discípulo. De dentro dela, brota o zelo missionário. Mas tal trilogia – encontro, discipulado e missão – se vive na comunidade. E esta se chama Igreja católica. Daí a importância de se criar a identidade católica. Para ajudar-lhe a construção, requer-se sólida formação. Avulta a importância da catequese e dos catecismos. Ainda no pontificado de João Paulo II, elaborou-se o Catecismo da Igreja Católica na forma ampla e mais recentemente preparou-se um Compêndio para facilitar-lhe o uso. Para o campo social, editou-se o Catecismo da doutrina social da Igreja. O Documento insiste em que a catequese não se limite ao meramente doutrinal, mas seja verdadeira escola de formação. Inclui cultivar a amizade com Cristo na oração, o apreço pela celebração litúrgica, a vivência comunitária, o serviço aos irmãos. Em termos de Igreja de Brasil, a CNBB lançou o Livro do católico  para ajudar tal formação do leigo em vista da missão. Portanto, quatro passos:

  1. experiência pessoal inicial da fé em Cristo;
  2. consciência da identidade católica;
  3. alegria de vivê-la;
  4. zelo missionário de levá-la aos demais pelo anúncio do Reino da Vida.

O tema da vida ocupa o horizonte subjetivo e objetivo da missão.

(os grifos são nossos)

Fonte:

IHU