Muitos estudiosos consideram o termo “leigo”, em sua origem, portador de acepção predominantemente negativa. Trata-se de realidade definida pela falta ou por carência de alguma coisa. O vocábulo deriva do latim laicus, cuja origem vem do grego laikós, e designa a pessoa que não detém conhecimento aprofundado sobre determinada área. Em contexto religioso, tradicionalmente refere-se à pessoa que não possui conhecimentos necessários para assumir determinadas funções dentro da organização religiosa ou, no contexto cristão, que não recebeu o sacramento da ordem, em um de seus graus: diaconato, presbiterato ou episcopado. Leigo é, portanto, aquele que não faz parte da hierarquia eclesiástica. Quando alguém se reconhece enquanto leigo, geralmente o faz pela falta, pelo que não possui. Este horizonte compreensivo ainda predomina no imaginário popular contemporâneo.
Outros, porém, acolhem e destacam compreensão positiva do termo. Consideram-no derivado do vocábulo latino “laós” que significa, simplesmente, povo, multidão, massa de pessoas. O Concílio Vaticano II acolhe, destaca e assume tal horizonte em sua Constituição Dogmática Lumen Gentium. Ao expressar a autocompreensão da Igreja, desautoriza, em relação ao leigo, qualquer mentalidade negativa, excludente ou desprezível. Antes de tecer qualquer distinção entre hierarquia e laicato, nesse documento, o Concílio enfatiza a centralidade do Povo de Deus, formado por todos os batizados.
Desde o espírito do Concílio, há 50 anos praticamente, a ação evangelizadora da Igreja Católica promove intenso esforço para incutir acepção positiva e atribuir cidadania eclesial ao leigo no seio das comunidades cristãs. Fala-se da centralidade do batismo e da dignidade de todo batizado enquanto membro do Povo de Deus. Chega-se inclusive a enfatizar a laicidade do próprio Jesus de Nazaré. Ele não fazia parte da hierarquia religiosa judaica, não era sacerdote, levita, fariseu ou doutor da lei. A Igreja da América Latina, sobretudo nos anos 70 e 80, no esforço de recepção do Concílio, promoveu, de muitos modos, a formação de nova consciência no laicato. Na caminhada das comunidades cristãs multiplicaram-se os ministérios leigos e a promoção de diversificadas maneiras de engajamento eclesial. Na explicitação dessa nova consciência, cunhou-se ricas expressões, dentre outras, “somos todos Igreja”, “novo jeito de ser Igreja”, “pelo batismo recebi uma missão”.
No esforço evangelizador em vista de mudança hermenêutica e prática na compreensão, organização e configuração da vida cristã, o Concílio Vaticano II explicitou a igual dignidade eclesial de todos oriunda do batismo. Nesse sentido, ensina que todos os batizados são chamados a participar e cuidar, de modo corresponsável, da vida interna da Igreja, sacramento do Reino de Deus, e participar, do mesmo modo, da construção da sociedade justa, misericordiosa, solidária e fraterna.
Não obstante reconhecermos o empenho de renovação eclesial promovido pela Igreja – especialmente desde o contexto que antecedeu e provocou a convocação do Concílio Vaticano II e, depois, o que foi impulsionado por ele –, diante das atuais transformações culturais, tal empenho mostra-se insuficiente para provocar e/ou sustentar mudanças significativas na mentalidade religiosa predominante. A cultura da corresponsabilidade eclesial revela-se construção incipiente. Entre os cristãos católicos contemporâneos, infelizmente de modo quase generalizado, continua imperante a presença arraigada de compreensão negativa do termo leigo. Como se não bastasse, no seio da Igreja e na cabeça de muitos membros do Povo de Deus, revela-se hegemônica a mentalidade “clericalista”. Esta considera o “clero” como o único responsável legítimo pela vida da Igreja. Por clero, entende-se aqueles que participam da hierarquia da Igreja: bispos, padres e diáconos. Tal mentalidade está viva e muito presente no universo religioso atual. Além disso, constatamos o arrefecimento de importantes sinais de transformação observados no seio da Cristianismo, especialmente na caminhada da Igreja latino-americana na segunda metade do século XX. A promoção constante no engajamento eclesial do laicato não ajudou a superar a mentalidade predominante da superioridade do sacramento da ordem em relação ao do batismo. Não consolidou a passagem real do “ir a igreja” para o “ser Igreja”.
Na Arquidiocese de Belo Horizonte, a partir do Projeto Pastoral Construir a Esperança , a Assembleia do Povo de Deus tornou-se paulatinamente a instância de maior mobilização, envolvimento e participação dos fieis. No ano de 2012 aconteceu a IV Assembleia do Povo de Deus. Nesta, depois de pretensiosa pesquisa de escuta da sociedade , avaliou-se o projeto de evangelização promovido pela assembleia anterior . Em seguida, estabeleceu-se prioridades muito significativas. Primeiramente, em torno do eixo espiritualidade encarnada, a partir da centralidade da pessoa de Jesus, definiu-se como urgência na ação evangelizadora a promoção do primado da Palavra de Deus, o cuidado para que a liturgia favoreça o encontro com o Senhor Ressuscitado e o desenvolvimento de sólida espiritualidade trinitária de comunhão e de serviço. Em segundo lugar, em torno do eixo da vida comunitária, a partir da consciência da comunidade de fé como lugar da experiência de Jesus, estabeleceu-se como compromisso primordial a promoção do crescimento da autocompreensão e a concretização da Igreja como rede de comunidades irmanadas pela dinâmica do Reino de Deus. Para tal, incentiva o empenho de todos os cristãos católicos na organização de estrutura participativa e promove o investimento na formação bíblica e teológica continuada para todos. Além disso, colocou-se como urgência evangélica a valorização e criação de novos ministérios leigos, com ênfase na participação da mulher. Assumiu-se duas grandes prioridades: a promoção da complexa realidade familiar e a concretização da opção preferencial pelos jovens. Por fim, em torno do eixo da inserção social, a partir do sinal profético da opção pelos pobres e excluídos e da perspectiva ecumênica e do diálogo inter-religioso, assumiu-se o compromisso de promover a participação cidadã dos fieis em prol construção da sociedade justa e fraterna; de elaborar e acompanhar projetos sociopolíticos, além de procurar qualificar a presença e atuação da Igreja nos diversos meios de comunicação em vista da evangelização da cultura.
A pesquisa sobre o perfil do laicato da Arquidiocese de Belo Horizonte nasceu despretensiosa. Começou simplesmente com o desejo de concretizar presença observadora, qualificada e participante na IV Assembleia do Povo de Deus. Adquiriu maior fôlego ao longo do processo participativo, promovido pelo Vicariato Episcopal para Ação Pastoral, das conversas diárias com os leigos, da leitura das sínteses elaboradas nas assembleias paroquiais, forâneas e, sobretudo, arquidiocesana, quando definiu-se as prioridades estratégicas e as diretrizes da ação evangelizadora para o quadriênio 2013-2016. A leitura dos Planos de Pastoral, por regiões episcopais, confirmou as observações preliminares e as intuições pastorais constatadas. Em seguida, brotou o desejo de compartilhar as observações colhidas. Surgiu o convite para publicá-las ao apresentá-las, de modo ainda preliminar, no Encontro dos Formadores de Leigos da Arquidiocese de Belo Horizonte, promovido pelo Anima PUC Minas e, depois, à equipe do Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp).
Tendo presente os limites de toda pesquisa ao pretender observar e analisar a complexidade de determinada realidade, o objetivo dessas reflexões teológicas e pastorais concretiza-se no desejo de trocar ideias e alimentar discussões. Além disso, contribuir para que a ação evangelizadora da Igreja corresponda aos sinais dos tempos e ao que a “barca de Pedro” se propõe, ao acolher, como vocação primeira, a busca de ser sacramento do Reino de Deus e mediação histórica do projeto salvífico universal, anunciado e vivido, com fidelidade, por Jesus de Nazaré.
Para leitura dos dados, especialmente observados ao longo da IV Assembleia do Povo de Deus, pareceu-nos pertinente utilizamos metodologia anteriormente empregada, juntamente com o renomado teólogo João Batista Libanio, na pesquisa sobre as linguagens sobre Jesus presentes no meio das juventudes e das comunidades eclesiais de base. Utilizamos para a leitura analítica, em vez das categorias “cenário” e “tendência”, tão caras às últimas análises pastorais libanianas, outra semelhante, “mentalidade religiosa predominante”. Julgamos tal categoria apropriada, por ser mais direta em relação ao tema analisado e por nos permitir realçar forças preponderantes e ideologias hegemônicas nos processos de evangelização e na configuração cotidiana da vida eclesial. Bem como, por nos possibilitar a indicação, sem contradições, da presença de outras forças e ideologias mais restritas, com pretensões de conquistar espaço político, reconhecimento, cidadania e relevância na caminhada do Cristianismo Católico.
Nossas observações distinguiram, pelo menos, cinco perfis diferentes a partir da “mentalidade religiosa predominante” no laicato da Arquidiocese de Belo Horizonte no contexto da IV Assembleia do Povo de Deus. Primeiro, analisamos os leigos com mentalidade religiosa cristã predominantemente tradicional e, muitas vezes, com fortes traços ainda tradicionalistas. Segundo, tratamos dos leigos com mentalidade religiosa cristã carismática e, frequentemente, com elementos típicos do horizonte pentecostal ou neopentecostal, característicos de outras denominações cristãs. Terceiro, observamos os leigos com mentalidade religiosa cristã impactada pelo acesso aos estudos bíblico-teológicos. Depois, abordamos os leigos com mentalidade religiosa cristã transformada pela reflexão sociopolítica e ecológica. Por fim, nos debruçamos sobre os leigos com mentalidade cristã fecundada pela abertura ao pluralismo religioso e, até mesmo, com tendência cultural a “bricolagens” ou “hibridismos” religiosos. Para cada perfil seguimos a seguinte lógica: após a caracterização do perfil, procuramos tecer comentários teológicos e pastorais e indicar pistas para a ação evangelizadora da Igreja.
Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães
Secretário Executivo do Observatório da Evengelização