Apesar da lei ser um indicativo para a formação das consciências, o matrimônio deve ser lido em ótica pastoral-existencial, mais que jurídico-sacramental pela Igreja.
Formar as consciências, não substituí-las
Por Rodrigo Ladeira*
“A consciência é o centro mais secreto e o santuário, no qual o ser humano se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser.” (GS 6).
Antes de propor algumas chaves de leitura para a questão da consciência humano-cristã na Exortação Apostólica sobre a “Alegria do amor” (AL) de Francisco, consideraremos, de saída, que este texto trata, em primeiro plano, da complexidade da vida familiar na atualidade. O tema da consciência aparece aí de maneira assessora e se destaca, sobretudo, quando aborda os chamados “casos difíceis” no âmbito da relação matrimonial. Disso decorre que, na íntegra, AL não pretende uma abordagem do matrimônio na sua realidade jurídico-sacramental (objetiva), apesar de compreender a lei como indicativo para a formação das consciências (cf. AL 300). Francisco prefere, na esteira do Sínodo das Famílias (2015), uma leitura pastoral-existencial (pessoal) do matrimônio. Nesse caso, a dinamicidade das relações ficarão em destaque. É nessa via que nos aproximaremos do tema da consciência, entendendo que o que se aplica à realidade matrimonial, porque relacional, vale para todo e qualquer agir humano-cristão, uma vez que é aí que a consciência se vê chamada a atuar. Por fim, trataremos aqui não de qualquer consciência, mas daquela que já temos adjetivado de humano-cristã, portanto, a partir da relação com o Senhor, cabeça da Igreja, da qual participamos como membros. Essa consciência só pode ser compreendida à luz da Revelação e sua dinâmica reflexiva porque pressupõe um face-a-face com o Senhor, com a “consciência Jesus”.
A novidade do enfoque dado pelo papa sobre a vida matrimonial na questão da consciência passa por três atitudes fundamentais, aplicadas à Igreja na sua totalidade. Elas dão título ao cap. VIII da Exortação e estão assim encadeadas: acompanhar, discernir e integrar a fragilidade. Portanto, mais que teorizar sobre a consciência cristã, AL indica um modo de proceder pastoral da Igreja diante do cristão que, disposto a acolher o Evangelho, está aberto para discernir seu agir na solidão com seu Senhor. Obviamente a solidão cristã não é esquecimento do ser, porque o cristianismo é corpo. Como corpo vivo, cada membro deve se sentir requisitado na relação com o Senhor que por sua vez convoca-nos para o dever de acompanhar a dinâmica da Verdade (que é Jesus), orgânica, implicando o corpo na sua totalidade. Aos pastores, por exemplo, cabe o múnus de orientar a fé e acompanhar os fiéis no drama de tornar-se humano-cristão e cumprir a lei do amor evangélico, com paciência e delicadeza (cf. AL 296), sem imposição de normativas totalmente extrínsecas.
Para a formação da consciência cristã, Francisco indica a chamada “lei da gradualidade”, ensinada por São João Paulo II, na qual deve ser verificada a “consciência possível” de cada pessoa, “ciente de que o ser humano ‘conhece, ama e cumpre o bem moral segundo diversas etapas de crescimento’” (AL 295). Somos lembrados que a Igreja, mais que inquisidora, é um “hospital de campanha” (cf. AL 291). Como educadora da fé, seria para a Igreja “mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum ser humano” (AL 304). O caminho então deve, necessariamente, passar pela misericórdia e integração e não da simplória e fácil aplicação da norma geral e da condenação eterna. É imperativo “derramar a misericórdia de Deus sobre todas as pessoas que a pedem com coração sincero. (…) evitando os juízos que não tenham em conta a complexidade das diversas situações (…) atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem” (AL 296).
A AL nos convida a formar e não substituir as consciências (cf. AL 37). “Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas” (Al 305). A Igreja, corpo total, mais do que engendrar novas regras e normas canônicas, deve se preocupar em acolher as fragilidades e deitar sobre os caídos o azeite do amor que é Cristo mesmo.
O texto de Francisco, mais que apontar para uma malsã consciência individualista, põe em destaque uma sadia consciência eclesial, entendendo que a Igreja é organismo vivo onde cada membro, assumindo sua função, se faz promotor da integração por meio do acompanhamento e do discernimento. Obviamente, se se fala em acompanhar é porque cada membro, como signatário de Cristo, porque incorporado a ele, deverá se colocar numa relação de radical intimidade, nesse sentido sagrada, com Cristo cabeça, onde as consciências pessoais (não individuais) são iluminadas e encorajadas no Amor a decidir-se no e em vista do seu próprio corpo pessoal que é, no fim das contas, o corpo total.
Uma palavra de alento e de esperança para a liberdade das consciências, no Senhor, pode ser encontrada em Mateus 7,1. A regra de ouro, a exigência do Evangelho, é a de não julgar nem condenar. O papa diz ser até compreensível que alguns prefiram uma pastoral mais rígida, sem confusão, mas crê que Cristo deseja uma Igreja “atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade”. Mesmo se se parte da doutrina, toda mãe, como educadora, isso vale para a Igreja como depositária da fé, “não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada” (AL 308).
Não devemos temer o confronto com o Senhor. Um discernimento da consciência do crente, do batizado, só pode ser-lhe salutar no vis-à-vis misericordioso da Trindade. Esse caminho pode e deve ter a colaboração do corpo total, tanto daqueles que participam do corpo agindo “na pessoa de Cristo”, os presbíteros, nossos irmãos mais velhos, mas também dos mais novos, os batizados em Cristo.
Na igreja (com “i” minúsculo) de outrora, e durante muito tempo, fomos, os batizados, “impedidos” de atuar autonomamente nossa consciência, como se fôssemos cristãos de segunda categoria. Era vedada a inteligibilidade da fé, o que caducava a relação de intimidade com o Senhor. Agora, diante das circunstâncias do mundo moderno, com alegria, estamos restabelecendo, a passos lentos é verdade, o ideário de uma Igreja (com “I” maiúsculo) livre, chamada e atraída para dentro do Amor, para a relação esponsal. Quanto mais próximos do Amor, que é a Liberdade, mais livre ficamos, menos autossuficientes. Liberdade que gera a diversidade na unidade em Cristo, plenitude e maturidade cristã. “Foi o que Jesus fez com a Samaritana (cf. Jo 4,1-26): dirigiu uma palavra ao seu desejo de amor verdadeiro, para a libertar de tudo o que obscurecia a sua vida e guiá-la para a alegria plena do Evangelho” (AL 294).
Francisco nos encoraja a assumir o que em nós é frágil, fraco, débil, kenótico, abrindo assim espaços para a ternura. Só aí encontramos nossa consciência verdadeira porque inundada dos valores do Evangelho. “Jesus espera que renunciemos a procurar aqueles abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do drama humano, a fim de aceitarmos entrar em contato com a vida concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida complica-se sempre maravilhosamente”. (AL 308).
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*Rodrigo Ladeira é mestre em Teologia Litúrgica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) / BH-MG. Coordena as atividades de educação continuada e pós-graduação lato sensu dessa mesma IES. Ensina Liturgia e Sacramentos em vários cursos livres e de especialização de teologia em Belo Horizonte-BH.