Amoris Laetitia e o desafio de acolher a complexidade da realidade familiar

Acompanhar, discernir e integrar as fragilidades da realidade familiar

Igreja se encontra desafiada a rever sua prática evangelizadora diante do forte apelo pastoral que implica a relação conjugal.

Por Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães*

“A Igreja deve acompanhar, com atenção e solicitude, os seus filhos mais frágeis… dando-lhes de novo confiança e esperança, como a luz do farol de um porto… para iluminar aqueles que perderam a rota ou estão no meio da tempestade”. (AL, 291)

“A misericórdia não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de tudo, temos de dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a manifestação mais luminosa da verdade de Deus”. (AL, 311)

Nosso objetivo aqui é tão somente o de explicitar, diante da diversidade de situações da família, a boa notícia pastoral presente no denso capítulo VIII da Exortação Apostólica Pós-Sinodal do Papa Francisco, a Amoris Laetitia. O que fundamenta essa reflexão pastoral é a experiência da alegria diante da gratuidade do amor de Deus, que age em nossas vidas, apesar dos graves limites e fragilidades.

Vale a pena percorrer as cinco partes em que o capítulo está subdividido para saborear, de modo crescente, a interpelação papal em vista de concretizarmos a necessária e urgente conversão pastoral da Igreja.

Na primeira, a gradualidade na pastoral (293-295), enfatiza a necessidade de recuperar o Evangelho do matrimônio e de atenção pastoral misericordiosa e encorajadora, com diálogo e discernimento pastoral nas diversas situações, capaz de identificar os sinais de amor, os elementos que favoreçam a evangelização e o crescimento humano e espiritual. Para isso é preciso acolher e acompanhar as diversas situações com paciência e delicadeza, conscientes da gradualidade própria da condição humana.

Na segunda, o discernimento das situações chamadas “irregulares” (296-300), destaca que a chave para se concretizar um itinerário de acompanhamento e discernimento da vontade de Deus está na pedagogia divina da graça, na lógica do Evangelho, no caminho de Jesus: caminho da misericórdia, da integração na comunidade de fé, do não julgamento ou condenação. Mostra, então, que não há receitas simples, mas é preciso discernir e superar as atuais formas praticadas de exclusão eclesial, procurando integrar a todos, independente da situação em que se encontrem, levando em consideração o bem dos filhos, que devem ser considerados os mais importantes, a complexidade das diversas situações e o modo como as pessoas vivem e sofrem por causa de sua condição.

Na terceira, as circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral (301-303), o documento sublinha a sólida reflexão da Tradição cristã sobre os condicionamentos e as circunstâncias que atenuam a responsabilidade moral ou a vivência em plenitude das exigências do Evangelho, tais como a ignorância, a inadvertência, a violência, o medo, as afeições desordenadas, a imaturidade afetiva, a força dos hábitos contraídos, o estado de angústia, dentre outros fatores psíquicos ou sociais. Nesse sentido, lembra que a consciência das pessoas deve ser melhor incorporada na práxis da Igreja, bem como a concretização de um discernimento dinâmico sempre aberto a novas etapas de crescimento e novas decisões.

Na quarta, as normas e o discernimento (304-306), alerta para a mesquinhez de reduzir o discernimento pastoral à aplicação de um conjunto de regras aos casos “irregulares”, ou seja, avaliar a fidelidade a Deus de uma pessoa considerando apenas se o seu agir corresponde ou não à lei ou norma geral. Isso porque, como nos ensina São Tomás de Aquino, quando nos aproximamos dos casos particulares e concretos aumenta a indeterminação. Por isso, afirma que o discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. A preocupação maior deve ser a de não fechar o caminho da graça e do crescimento espiritual. Mostra, citando os números 44 e 47 da Evangelii Gaudium, que “um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades”. Termina recordando que a primeira lei dos cristãos é a caridade fraterna.

Na quinta, a lógica da misericórdia pastoral (307-312), recorda que o reconhecimento e a busca de compreensão das situações difíceis e complexas não significa fazer uma opção por uma pastoral dos fracassados, escondendo a luz do ideal mais pleno ou propor menos de quanto Jesus oferece ao ser humano. Ao contrário, sem diminuir o valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas de crescimento das pessoas na prática do bem possível. Em fidelidade à prática libertadora de Jesus, a Igreja é chamada a agir pela força da ternura, atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade, que assuma em sua práxis a lógica da compaixão, coração pulsante do Evangelho, pelas pessoas frágeis, evitando perseguições, juízos demasiado duros e impacientes ou afastando-se do nó do drama humano presente nas vidas concretas das pessoas. Recordando o número 47 da Evangelii Gaudium, o documento interpela sobre a importância de dizer não à tentação de, como cristãos, agirmos “como controladores da graça e não como facilitadores”, fazendo da Igreja “uma alfândega” e não “a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa”.

Como se pode concluir, a Igreja se encontra desafiada a rever sua prática evangelizadora diante desse forte apelo pastoral. Para isso, importa superar a lógica da “moral fria de escritório” e avançar no processo de conversão pastoral. Procurar se tornar, cada vez mais, a “Esposa de Cristo”, aquela que, como sacramento do Reino de Deus já presente no meio de nós, “assume o comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir ninguém”, que age “com o desejo sincero de entrar no coração do drama das pessoas”, “que sempre se inclina para compreender, perdoar, acompanhar, esperar e sobretudo integrar” quem vive “nas mais variadas periferias existenciais”: esta é a lógica que deve prevalecer na Igreja.

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*Prof. Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães é doutorando em Ciências da Religião pela PUC Minas. Mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE. Professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do Observatório da Evangelização. Assessor das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Membro do Conselho Arquidiocesano de Pastoral, da Comissão Permanente de Assessoria do Vicariato Episcopal da Ação Pastoral e do Conselho Ampliado de Formação do Seminário Arquidiocesano.