Contribuições de João Batista Libanio para as ações evangelizadoras da Igreja (III)

No dia 19/02/2017, João Batista Libanio completaria 85 anos de vida. Em memória do grande teólogo; professor; escritor; conferencista; orientador de estudos; assessor das CEBs, das Pastorais, da CRB e da CNBB; religioso jesuíta, presbítero da Igreja e vigário da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes em Vespasiano – MG, o Observatório da Evangelização publica uma série de reflexões sobre as contribuições dele para as ações evangelizadoras da Igreja.

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Retrato do teólogo João Batista Libanio                                                                       Belo Horizonte MG Foto: LEO DRUMOND / NITRO

Contribuições de João Batista Libanio para a refundação das CEBs – 3ª Parte

Pedro A. Ribeiro de Oliveira

3. Luta e Esperança porque Deus está conosco – 4o Intereclesial de CEBs – 1981

O Encontro de Itaici – SP fechou o ciclo definidor das CEBs e criou os parâmetros para seu desenvolvimento. A importância desse primeiro ciclo de Encontros é tão grande que Libanio inicia seu texto referindo-se aos grandes concílios da Igreja e afirma:

Algo novo começa a acontecer ao sul do equador. A Igreja do Brasil, na sua história como na sua eclesiologia, começa a ser marcada por “Encontros Intereclesiais de Comunidades de Base”. Já o nome não cabe em nenhum dos clássicos cânones. Não é Concílio, nem Sínodo universal ou diocesano, nem Assembleia de Bispos. Trata-se simplesmente de um Encontro. Quem se reúne? Não as cúpulas das Igrejas, mas suas bases acompanhadas, algumas de seu respectivo bispo, outras carregadas da legitimidade da cidadania batismal de seus membros com o beneplácito explícito ou silencioso do bispo e nenhuma contra a vontade dele. Mesmo para o canonista mais escrupuloso, o caráter eclesial de tais encontros excele (1981, p. 140-141).

Sua realização ocorre num contexto social e político mais favorável que os anteriores: de um lado, a abertura “lenta, gradual e segura” que não suprimiu a repressão mas diminuiu seu teor de violência e, de outro, o êxito da greve dos trabalhadores metalúrgicos do ABC paulista em 1979, que abriu o caminho para massivas manifestações populares com explícito apoio de bispos como D. Paulo Arns e D. Cláudio Hummes. Já o contexto eclesiástico era mais complicado devido ao pontificado de João Paulo II que, empenhado em combater o comunismo na Polônia colocava também sob suspeita a Teologia da Libertação e as CEBs. Por isso sua preparação foi perpassada por crises (5). Libanio compara-o ao episódio do filho da viúva de Naim a caminho do cemitério: “Jesus no caso foi D. Waldyr. Parem, não o enterrem. É filho de viúva pobre. Assumiu a preparação e levou-a à frente.” (1981, p. 141).

A metodologia dos encontros anteriores, à base de relatórios das comunidades, foi deixada de lado por tornar-se inviável devido à sua quantidade (6): cerca de 400. Melhor, porém do que qualquer relatório escrito, nesse Encontro a realidade vivida nas bases fez-se presente pela intensa participação de animadores e animadoras de CEBs. Ao todo participaram 280 pessoas, das quais 184 representantes de CEBs de quase todos os Estados e mostrando terem o domínio da palavra, sem receio de falar para bispos e teólogos (7).

O texto de Libanio foi redigido durante e logo após o Encontro e expressa sua reflexão teológica ainda sob o impacto emocional daquele evento.

3. 1 Temática do Encontro

3. 1. 1 Uma realidade sofrida

O ponto de partida, como recomenda o método ver, julgar e agir é conhecer a realidade das lutas, problemas, vitórias e sofrimentos do povo, tendo como focos a “participação na Igreja, solidariedade no bairro, justiça no mundo do trabalho e serviço na política”.

Pouco a pouco foi surgindo diante de nós o terrível quadro da opressão que pesa sobre as camadas populares. Aquela descrição tão sombria do Documento de Puebla ou afirmações gerais da situação de sofrimento do povo foram recebendo concretizações, determinações. Sucediam-se os grupos dos diferentes estados, ora do campo, ora das cidades. Somente a dolorosa monotonia de seus problemas, dificuldades e lutas continuava a mesma.

Quando se recorre à justiça ou às autoridades, o povo sofre discriminação. Ora vão de instância em instância, sendo remetidos de uma repartição a outra, até que se lhes acabe a paciência ou o pouco dinheiro para as conduções (1981,p. 145).

Os relatos não eram, contudo, simples narração dos fatos. Habituado a comparar sua realidade às realidades narradas na Bíblia, o povo das CEBs com frequência fazia o paralelo entre elas. Assim, casas destruídas pela polícia faziam pensar em “Jesus que não tinha onde repousar a sua cabeça. Eram esses pequenos toques bíblicos que vinham trazer um pouco de luz à escuridão daquela noite de opressão”. De todo modo, “foram mais de 4 horas, em que estivemos sentados ouvindo essa horrível ladainha de sofrimentos, de miséria, de opressão, que pesa sobre os queridos de Deus” (1981, p. 146). Ao mesmo tempo, quase todas as narrativas mencionavam as lutas contra essa situação, mesmo quando seu êxito era apenas parcial. Essa capacidade de reação das comunidades populares está ligada ao apoio que recebem da Igreja. Isso se deve, é claro, à própria natureza do encontro que reunia comunidades eclesiais católicas.

Desses relatos Libanio deduz existirem “dois tipos de comunidades de base. Umas eram tipicamente organizações que nasciam da Igreja, (onde) a ligação com o clero é mais forte e permanece sempre uma dependência. (…) Elas evoluem na direção de dar origem e sustentar movimentos populares de reivindicação, de lutas sindicais”. Fator muito importante nessa evolução de comunidades nascidas no ambiente religioso – inclusive dos Cursilhos de Cristandade – e “a relação entre a Palavra de Deus e a vida. Como aquela ilumina esta, e esta, por sua vez, oferece lugar para escutar e entender a Palavra”. Outro tipo são comunidades organizadas a partir de uma luta popular motivada por necessidades básicas da vida. Nelas, “o povo reúne-se para discutir seus problemas, suas urgências concretas e logo emerge o elemento de fé, o desejo de celebrar essas lutas. E em torno delas, nascem comunidades eclesiais”. Essa diferença no fator originário, porém, não é decisiva:

nos dois casos, tornou-se elemento decisivo e essencial a todas a articulação fé e vida, compromisso com as lutas e Evangelho, a inspiração da Palavra de Deus e os problemas concretos. As CEBs fazem então parte do movimento popular, mas guardando sua especificidade, sua originalidade de lugar de reflexão à luz da fé, de oração, de celebração dos sacramentos, sobretudo da Eucaristia. Há um vaivém contínuo entre as comunidades eclesiais e movimentos que brotam delas (1981, p.147).

Essas observações levam o autor a concluir que a dimensão religiosa das CEBs não é apenas uma cobertura religiosa para movimentos de caráter social ou político – como na época insinuavam seus detratores – mas sim o fator decisivo para sua existência como comunidade cristã em missão no mundo: uma fé viva, que se expressa por meio de obras em favor dos “queridos de Deus”. Com efeito, “esta caminhada se fez na luta. As lutas são o reverso das opressões.” (1981, p. 147).

 

3. 1. 2 As lutas: reverso das opressões

É amplo o quadro de lutas traçado pelas comunidades. Elas abrangem a melhoria nas condições de vida (casa, água, transporte, escola, alimento, terreno para morar, esgoto, luz, calçamento nas ruas, segurança), justiça no mundo do trabalho (terra para trabalhar, vender melhor seu produto, evitar atravessadores, aumento de salário, segurança no trabalho, contra o desemprego), reivindicações de direitos sociais (sindicatos autênticos e sem peleguismo, maior participação nas decisões políticas) e maior participação nas decisões da Igreja (8). “Iríamos muito longe se as descrevêssemos como nos foram relatadas pelos grupos”. Nelas se destacam: “os aliados que apoiam a caminhada do povo, os adversários que a obstaculizam e as artimanhas sutis que o povo necessita desenvolver nessas situações con itivas desfavoráveis” (1981, p. 148).

Os principais adversários são as autoridades, os órgãos públicos e os grandes do lugar, a que eles chamam comumente de tubarões”, enquanto governantes como “presidente e ministros estão mais distantes”. Há “radical desconfiança de tudo que vem do governo. Mesmo quando num primeiro momento tudo indica que seja algo para beneficiar o povo ficam com as orelhas em pé para descobrir o engodo”. Outros adversários são “os sindicatos pelegos, que não defendem os direitos dos trabalhadores, mas dos patrões”. A experiência das comunidades aponta também como adversários os meios de comunicação que caluniam e chamam de comunista quem luta por direitos. Também foram apontados “bispos, padres ou irmãs que não acompanham as comunidades nas suas lutas” por causa de “sua visão autoritária e tradicional da Igreja, confinada unicamente ao espaço religioso e espiritual, sem nenhum envolvimento com os problemas reais do povo” (1981, p. 149).

Do outro lado estão os que apoiam as lutas e se aliam às comunidades.

Bispos, sacerdotes e religiosos/as têm sido decisivo para o surgimento, crescimento e fortalecimento das CEBs. Repetidas vezes voltou essa constatação da relevância da presença desses setores de Igreja à caminhada das comunidades. Na mesma linha, pudemos perceber como a Comissão Justiça e Paz, a CPT, a CPO, Centro de Defesa dos Direitos Humanos, Pastoral Ambiental, isto é, a colaboração de médicos, advogados e universitários engajados têm colaborado no fortalecimento das CEBs (1981, p. 149).

O mais importante, sem dúvida, é que as próprias CEBs se apoiam e se ajudam mutuamente. Encontros e visitas entre elas lhes dão novo vigor.“Na medida em que as comunidades se reúnem para celebrar a Palavra e discutir os problemas das pessoas, elas se firmam. As pessoas percebem a importância dessas comunidades.” Além disso, “as CEBs alimentam os movimentos e associações populares e são, por sua vez, alimentadas por eles”. Destacam-se os sindicatos autênticos, que reforçam as CEBs ao mesmo tempo “que elas os nutrem com líderes, pessoas comprometidas com as causas populares. Daí a importância atribuída por tantos relatórios às vitórias nas eleições sindicais e como o sindicato pelego lhes é inimigo” (1981, p. 150). A colaboração entre as CEBs e organizações populares é fundamental para o êxito das lutas.

O povo é fértil em criação de entidades populares: associação de lavadeiras, grupos de quarteirão, centros comunitários, associação dos amigos do bairro, comitês populares, roça e criações comunitárias, cooperativas de compra e venda, açougue e armazéns comunitários, feiras comunitárias, associação de professores, de motoristas, de plantadores de pêssegos, de arroz etc… Fora do contexto de toda essa variada gama de pequenas criações comunitárias de luta, de sobrevivência, de mútua ajuda, não podemos entender a vitalidade das CEBs (1981, p. 150).

Nessas lutas desiguais as comunidades de base usam “meios simples e pobres” para alcançarem seu objetivo. “São verdadeiras artimanhas sutis, cuja habilidade é transmitida no interior das comunidades, nos encontros. Grande parte da sede que têm de encontros provém desse desejo de aprender e transmitir” essas táticas que são descobertas no próprio processo social e que precisam ser empregadas pelos pequenos e fracos diante de inimigos poderosos (1981, p. 150).

Várias lutas foram apresentadas em forma de encenações cuja estrutura pouco variava: iniciava-se por alguma situação de opressão onde “aparecia o povo sofrendo, desunido, desintegrado”, levando alguém a falar da necessidade de união e de organização. Daí vinha o afrontamento com o opressor e depois de alguma peripécia, a vitória do povo unido. O autor pergunta: este esquema “reflete uma realidade ou antes um desejo? Mais provavelmente eles preferiram fixar para o plenário somente aquelas lutas em que a vitória foi o desfecho final”. Impressionado pela “força de esperança das bases” Libanio conclui que tal força é dada pela “utopia sempre presente, decorrente da certeza de que Deus está de seu lado e por isso vencerão” (1981, p. 157).

Por isso, a estratégia das CEBs não se resume, contudo, a identificar os adversários, conquistar aliados e adotar táticas eficazes para as lutas sociais. Elemento essencial nela é a referência à Palavra de Deus. Diz um depoimento: “a primeira coisa que a gente põe é o Evangelho, onde temos a segurança”. E Libanio comenta:

Aí está uma descoberta simples e eficaz. O grupo bíblico ou a celebração mostra aos fiéis que a situação em que vivem não corresponde ao projeto de Deus. “O novo projeto de Jesus é a igualdade de todos”, resume um representante do Pará. Outro ponto firme é a convicção de que “Deus está com o povo e por isso o povo não arreda pé”, continua o mesmo lavrador. Fazer passar a todo o grupo a certeza de que Deus está do lado dos pobres constitui a base da força popular. “Senti a presença de Deus”, “Somos como os 70 discípulos enviados por Jesus para levar a mensagem”, “Com a ajuda do Espírito Santo fomos informados de que … ” , frases como essas revelam essa consciência profunda que anima a comunidade (1981, p. 151).

Essa convicção da presença de Deus na vida e nas lutas do povo é reforçada pelas celebrações das comunidades, onde a fé partilhada torna-se mais firme e profunda. Isso ocorre também nos encontros de CEBs, e Libanio dedica todo um capítulo de seu texto a esse tema.

3. 2 Celebração da fé

Para o autor, “todo o IV Encontro transformou-se em magna celebração de fé das comunidades de base”. A exemplo do povo de Israel, suas lutas e vitórias tornavam-se hinos, orações, cânticos e gestos corporais de louvor a Deus. “A mística da celebração não animou unicamente os dois momentos principais para a oração – de manhã e no cair da tarde – mas invadiu todos os momentos, ora sob a forma narrativa, ora através das conversas pelos corredores, ora nas intervenções do plenário” (1981, p. 155).

Um exemplo: a via-sacra da ressurreição.

À frente ia a cruz da Páscoa do povo. Quatro estações. Na primeira celebrou-se a luta pela terra. (…) A fila da mandioca – símbolo do pobre agricultor – derruba simbolicamente a fila da cana – símbolo do dominador – que vai caindo ao solo. (…) Repetem cenas vividas de perseguição, prisões, liberdade, união e canto de vitória. Aquilo que a comunidade durante anos experimentou na dureza da luta contra os projetos de plantar cana e na destruição de suas roças de subsistência de mandioca era agora celebrado diante de nós. A segunda estação foi a experiência de outra Comunidade que cria seu Conselho comunitário de bairro num esforço de união e organização. Outro passo foi a vitória da água. Numa quarta cena o pessoal mostra a resistência de favelados às ordens de despejo. E na passagem de uma estação a outra, todos cantavam o hino religioso popular «Bendito da Mãe das Dores» (1981, p. 155).

A celebração final recapitulou o Encontro em forma de oração, com a ajuda de um trenzinho de cartolina

Na locomotiva tinha escrito “Deus convoca seu povo”. No vagão seguinte: «Para as tarefas de», no seguinte: «participação na Igreja», no seguinte: «solidariedade no local de moradia», no seguinte: «serviço na política» e no seguinte: «justiça no trabalho». No verso dele todos os participantes foram convidados a assinar seu nome. E no final da liturgia de encerramento a equipe responsável do IV Encontro entregou-o de lembrança para a equipe que assumira a preparação do próximo Encontro, exprimindo o sentido de continuidade. Com essa mesma significação, um membro da equipe cessante toma do altar uma das velas acesas e entrega-a à Igreja de Fortaleza na pessoa de um de seus membros. Estava selado o pacto de fidelidade de manter acesa essa chama que vem iluminando as comunidades nos diversos Encontros (1981, p. 156).

 

Libanio observa o contraste entre “celebrações comunitárias de religiosos, de clero, de jovens estudantes”, sempre “povoadas de silêncios, de momentos de hesitação, em que as pessoas temem assumir a palavra” e as liturgias populares, cheias de falas que traziam a realidade vivida para ser celebrada. Daí sua reflexão final:

Considerando o tempo da oração da manhã e o da missa, tínhamos mais de duas horas de celebração por dia. E quando lemos no jornal os comentários dos temerosos de que as comunidades de base se afastem do religioso para perder-se no político, percebemos como essas pessoas estão longe da realidade, perturbadas pelos próprios fantasmas. O povo educa-nos na oração. Ele gosta de rezar. Toma com tranquilidade o tempo necessário, sem pressa (1981, p. 157).

Paralelamente às celebrações, o 4° Intereclesial teve momentos de expressão artística popular, como cânticos e poemas, que Libanio comenta revelando o quanto o emocionaram. Mas para não aumentar demasiadamente este artigo, passaremos ao tópico final.

3. 3 Questões suscitadas pelo Encontro

Ao terminar um Encontro como esse, o teólogo sai com a cabeça fervilhando de questões”, diz o Autor (1981, p. 159). Quem no Encontro anterior havia se maravilhado com a exacerbação da fala popular agora se maravilha com seu amadurecimento em tão pouco tempo. Os assessores, que tinham tido papel preponderante nos dois primeiros Intereclesiais, submeteram-se ao silencio diante das falas populares no 3° Encontro e estavam preparados para manterem-se quietos também no 4° Encontro. Na altura do 3° dia, porém, esse silêncio dos assessores foi questionado por representantes das bases. Libanio conta que um deles “chegou a dizer: ‘vocês querem guardar os seus conhecimentos para si, arrancando de nós os nossos e depois escrever livros? Também queremos tirar de vocês o que sabem e escrever nosso livro’. Foi uma risada” (1981, p. 160). Essa provocação ajuda o autor a refletir sobre a contribuição específica dos bispos e dos assessores ou assessoras.

Os bispos “deram límpido testemunho de serviço eclesial. Sempre presentes, atentos. Bebiam as palavras dos pobres como lição de sabedoria. Essa proximidade com o povo santifica e converte os pastores (1981, p. 160). Menciona especialmente o cardeal Aloísio Lorsheider, que fora escolhido pelas comunidades do Ceará como parte da delegação eleita pelas bases, e que assumiu com alegria – e coragem, digo eu! – a realização do 5° Encontro em Fortaleza, apesar das pressões eclesiásticas para que os Encontros Intereclesiais passassem ao controle da CNBB (9).

 

Os assessores “guardaram a discrição própria de quem realmente quer aprender do povo”, mas isso não impede contribuírem na área que lhes é própria, como fez Fr. Carlos Mesters ao relacionar “a situação de opressão e de sementes de libertação descrita nos relatórios dos regionais à do Povo de Israel no Cativeiro do Egito até a criação da nova Sociedade com a ocupação da Palestina”, dando assim “um banho de esperança bíblica para todos nós” (1981, p. 159). Frei Betto foi chamado a fazer “rápida exposição sobre o problema da relação concreta e prática da fé e a participação nos movimentos populares e nos partidos”. Chamou então a “atenção para a falsa alternativa de restringir-se unicamente a atividades religiosas ou de reduzir tudo ao sindicato, ao partido. As comunidades eclesiais devem guardar uma autonomia de vida de um lado e articular-se com os movimentos de outro” (1981, p. 160). E Leonardo Boff

mostrou-nos como nas comunidades se dá uma atualização do mistério pascal, aparece o evangelismo da Igreja e surge uma figura nova de Igreja. O mistério pascal é um paradigma do que continua acontecendo na história. Jesus morre na cruz iníqua, sofre as estações da paixão do povo, mas também ressuscita na resistência e esperança do povo. Outras Igrejas podem ser mais ricas em instituições, falam mais do Evangelho. Mas as CEBs são mais evangélicas por causa das notas evangélicas de alegria, esperança, entusiasmo, jovialidade, largueza de coração, boa nova apesar da opressão e certeza da vitória, apesar dos empecilhos, que nelas reluzem. E a figura nova da Igreja surge quando pobres e despretensiosos grupos de cristãos se reúnem até debaixo de uma mangueira para rezar, para ouvir o Evangelho, para testemunhar a fé em Jesus, para segui-lo (1981, p. 160).

Entre os problemas a serem resolvidos está o de “compreender dentro de nossa visão pastoral conciliadora e harmônica, a dimensão constante de luta que apareceu desde o primeiro momento do encontro até o fim. Estamos diante de comunidades de base cujo dia a dia é continua e permanente luta“. Talvez foi a palavra mais repetida. Junto com a luta está “a consciência que a sustenta, (que) não é alimentada por nenhuma ideologia estranha, para usar o jargão dos discursos do sistema, mas pela consciência religiosa, de que a sua força vem de Deus, do Evangelho lido em comunidade, da percepção dos direitos inalienáveis outorgados por Deus, da mística gerada nas celebrações”. Essa consciência que faz cada vitória do povo ser celebrada “como ato de ação de graças a Deus, com canto e ritos religiosos” (1981, p. 162).

Esse problema desdobra-se em como “pensar uma pastoral que não seja conflitiva? Em muitos casos “a Igreja, em sua forma institucional, chegou depois. O Evangelho nunca. Ele sempre está na origem”. Aparece logo “a questão da violência, não como questão teórico-abstrata, mas como decorrência imediata do compromisso. O espírito comunitário afirma-se precisamente nessa comunhão de luta. Lá ele cresce, revigora-se” (1981, p. 163).

Na mesma problemática está a necessidade de conhecer-se melhor “as artimanhas e sutilezas populares. A nossa pedagogia popular ainda está capenga, por falta de compreender e captar com maior clareza as finuras do jeito popular de fazer as coisas, a inventividade daqueles que dispõem unicamente de recursos pobres”. Há que se recorrer à pedagogia de Paulo Freire para elaborar e sistematizar a pedagogia da artimanha (1981, p. 163).

Outro problema está na relação do político com a pastoral: as “comunidades eclesiais têm sua originalidade e identidade própria a partir da fé. Mas no dia-a-dia estão em permanente permeação com os movimentos populares reivindicatórios, sindicais e partidários”. O problema coloca-se “mais no nível da pedagogia que da simples reflexão teórica”. Explica:

se o Sindicato esvaziasse as comunidades e não permitisse que seus a filiados fizessem política partidária, ou se o partido viesse absorver todas as forças, deixando as lutas reivindicatórias e sindicais e as comunidades desmunidas de seus membros, estaríamos articulando falsamente as diferentes lutas e movimentos populares. Tampouco tem sentido uma comunidade eclesial que queira reter os membros dentro de si, impedindo-os de participar nos movimentos populares e partidos, a título de defender a comunidade da politização, em nome de pretensa primazia do religioso (1981, p. 163).

Levanta-se também o problema do projeto político. Não há dúvida de que as CEBs rejeitam o sistema dominante representado pelo Governo, pelas empresas, pelos patrões, pela polícia, pelos grandes proprietários, que são inimigos do povo. “As vitórias celebradas referem-se a enfrentamentos com esses poderes” (1981, p. 163). Essas vitórias, porém, são pontuais, porque estão longe de derrubar aquele sistema. “Em termos de utopia, aparece claro aonde se quer chegar: o projeto de Jesus, de fraternidade, de igualdade, de valorização das camadas populares e pobres. O que não parece ainda refletido e discutido são as etapas intermediárias, quais são as políticas e estratégias para chegar lá.” E termina com uma hipótese: “talvez o interesse pelo projeto político tenha aparecido sob a forma de pergunta: o que é que os partidos têm por detrás? A curiosidade pelos projetos dos partidos já começa a revelar esse interesse para que a utopia seja mediatizada historicamente” (1981, p. 164).

Finalmente Libanio constata a existência da “sadia tensão” entre a “evangelização em grupos pequenos – círculos bíblicos, celebrações das comunidades, encontros de reflexão – e a evangelização de massa através da reorientação de ritos tradicionais como procissões, vias-sacras, dramatizações populares”. As CEBs nascidas do atendimento personalizado em grupos pequenos percebem agora a importância de momentos de manifestação de massa. A grande quantidade de pessoas “produz efeito multiplicador e de crescimento de legitimação social. Naturalmente isso não pode ser feito nos moldes tradicionais conservadores, mas deve guardar o espírito das comunidades de base: comunhão e participação numa luta animada pelo Evangelho”. Mas conclui que “estamos ainda nos inícios” (1981, p. 164).

Luta e esperança, porque Deus está conosco. Este seria o resumo, para mim, desses quatro dias”. A esperança é o “motor da caminhada” porque está “radicada no duplo pólo da presença de Deus e da união-organização do povo”. Por isso as 300 pessoas despediram-se animadas. “O clima do Encontro foi de fato de otimismo. Fora de uma perspectiva de fé e de Igreja, pode parecer um ufanismo imprudente”. Lembrando a reação dos judeus diante dos apóstolos, Libanio afirma: “os 300 participantes não saíram bêbados do Encontro. Mas sentiram sim a presença do Espírito de Deus, que se compraz de estar do lado do mais fraco, do pobre, do que nele confia e não na força do dinheiro ou das armas”. E conclui: “saímos com os olhos voltados para a luta que prossegue, carregando a força da experiência vivida e sonhando com nossa próxima celebração dentro de três anos em Fortaleza. Até lá vai correr muita água debaixo da ponte” (1981, p. 164).

 

Conclusão

Os textos produzidos pelo Pe. Libanio a partir de suas observações sobre os quatro primeiros encontros intereclesiais são uma importante contribuição para a refundação das CEBs. Por isso, ao fazer aqui seu resumo comentado tomei como chave de leitura as questões que me parecem mais relevantes para o contexto atual. Nesta conclusão retomo esses pontos enfatizando sua atualidade.

Libanio foi mestre na pedagogia da assessoria. Sua participação nos Encontros Intereclesiais tinha pouco destaque porque ele raramente falava para a grande assembleia. Sabia que aquela era uma oportunidade ímpar para escutar o que o pessoal das CEBs tinha a dizer e, humildemente, escutava, observava e fazia suas anotações (10). Depois conversava com outros assessores, com pessoas da base, com bispos, sempre se dispondo a esclarecer as questões teológicas suscitadas no desenrolar do encontro. Tendo grande prestígio entre os bispos, era ele que se incumbia de, mineiramente, resolver as questões mais espinhosas. Seus textos bem expressam essa maneira de produzir conhecimentos a partir do encaminhamento teórico de questões levantadas pela prática.

Sua tese central é que o ser-Igreja supõe o ser-Povo. Daí seu encantamento com as falas que apontavam a autoconsciência popular: o povo percebendo-se a si mesmo como sujeitos da própria libertação. Não é este o desafio da Igreja católica hoje? Reclericalizada durante dois pontificados marcados pela “grande disciplina”, ela tornou-se uma Igreja de sacristia. Só a participação ativa do Povo-sujeito pode recuperar aquela Igreja presença no mundo dos pobres e na contemporaneidade. Neste sentido, refundar a CEB é refundar a própria Igreja católica, tirando-a das sacristias e templos e levando-a para as ruas e campos.

Isso supõe reativar a pedagogia libertadora que faz a diferença entre o “antes” e o “depois” do nascimento da CEB. Pedagogia que tem suas raízes na prática de transformação social a partir das bases e se expressa através do discurso fundado não mais no saber recebido mas sim no saber descoberto. Libanio aponta o papel crucial desempenhado pela Bíblia quando a pedagogia libertadora é usada nas comunidades cristãs: a intimidade do povo com a Palavra de Deus o leva a ver a presença de Deus no meio dele e seu projeto de Reino como Esperança para o êxito em suas lutas. Essa é a convicção própria das CEBs: “luta e esperança, porque Deus está conosco”. É nas lutas pela nova sociedade (tema que será desenvolvido em outros Intereclesiais) que se faz a experiência de Deus como libertador junto com seu Povo. Essa pedagogia libertadora requer a participação de agentes de pastoral capazes de desbloquear medos e preconceitos introjetados no povo pela cultura dominante. Por isso sua formação merece toda atenção. Não por acaso, portanto, este talvez tenha sido o campo ao qual Libanio mais dedicou seus esforços: a formação de agentes de pastoral.

Enfim, fica evidente que a CEB tem uma estrutura leve: não é reconhecida pelo Direito Canônico nem dispõe de patrimônio econômico para se autossustentar. Sua existência como “nova forma de ser Igreja” – como a qualificou em 1982 o Documento n° 25 da CNBB – depende de sua capacidade de conquistar o consenso dos fiéis e o apoio dos bispos. A isso devem se dedicar os teólogos e teólogas: explicitar na linguagem católico-romana a eclesialidade das CEBs. Libanio e outros assessores de CEBs abriram esse caminho, mas ainda há muito chão a ser conquistado.

 

Notas:

5. Libanio relata esses percalços com muita prudência, conforme exigiam as circunstâncias do momento. Hoje seria possível completá-lo com mais informações, mas isso fugiria ao propósito deste artigo.

6. Pe. José Oscar Beozzo, principal coordenador do encontro, assegura que doou o material para o centro de documentação da PUC de São Paulo, mas quando lá estive não consegui encontrar nem sinal dele.

7. Registro aqui a inesquecível fala de uma animadora de comunidade de Goiás – GO, referindo-se a D. Tomás Balduino: “este é o companheiro D. Tomás, que é bispo na minha diocese”. Esse clima de liberdade de expressão entre o conjunto de participantes e o espaço favorável da Casa de Itaicí ensejaram debates memoráveis, como o de D. José Maria Pires e Leonardo Boff sobre a eclesialidade das CEBs.

8. Eram tantas as lutas, que era impossível narrar todas. Frei Betto sugeriu-me, então, fazer um questionário aos participantes para sabermos em quantas delas cada pessoa estava envolvida. Rapidamente elencamos os principais tipos de lutas para colocar no questionário a serem respondidos pelos participantes. Libanio viu o questionário e protestou que ali não constava sua própria luta “pela transformação da Igreja”. Aceita a reclamação, ela foi incluída no questionário. Resultado: foi a que obteve maior número de respostas. Os resultados daquela pesquisa podem ser encontrados em OLIVEIRA (1981).

9. O fato de se chamarem Encontros intereclesiais e não “nacionais” tem um motivo profundo, que foi muito debatido na reunião entre bispos e assessores durante o 5° Encontro, em Canindé. Os Encontros não são nacionais porque as CEBs não são um movimento, mas sim a base da Igreja particular. O caráter intereclesial assegura a liberdade de uma Igreja particular convidar outras Igrejas (católico-romanas ou de outras confissões) para refletirem e celebrarem juntas, sem pedir autorização a alguma instância superior. Quando D. Aloísio aceitou levar o 5° Encontro para a Arquidiocese de Fortaleza, ele se comprometeu em fazê-lo em comunhão com o Regional da CNBB. Assim, ele garantiu a intereclesialidade do Encontro, mas reconheceu a importância da CNBB na promoção dos Encontros.

10. No 2° Encontro ele sentou-se ao fundo da sala e cumpriu a função de tradutor para dois convidados alemães, que haviam contribuído financeiramente para a realização do evento.

 

Referências:

BETTO, Frei. A educação nas classes populares. SEDOC, Petrópolis, 1979, p. 787-797.

BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: as comunidades eclesiais de base re-inventam a Igreja. SEDOC, Petrópolis, 1976, p. 393-438.

LIBANIO, J. Batista: Uma comunidade que se rede ne. SEDOC, Petrópolis, 1976, p. 295-326.

LIBANIO, J. Batista: Comunidade Eclesial de Base: pletora do discurso. SEDOC, Petrópolis, 1979, p. 765-787.

LIBANIO, J. Batista: O IV Encontro Intereclesial de CEBs na interpretação de um teólogo. SEDOC, Petrópolis, 1981, pp. 140-165.

MESTERS, Carlos: Flor sem defesa: ler o Evangelho na Vida. SEDOC, Petrópolis, 1976, p. 326-392

OLIVEIRA, Pedro Ribeiro de: Oprimidos: a opção pela Igreja. REB, Petrópolis, dez. 1981, p. 643-653.

 

Sobre o autor:

Pedro A. Ribeiro de Oliveira. Nascido em Juiz de Fora – MG. Doutor em Sociologia pela Universidade Católica de Louvaina (1979). Foi professor nos Programas de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora e da PUC-Minas. É membro da Equipe do ISER-Assessoria. Desde 1976 tem assessorado as CEBs no Brasil. Endereço: Sítio Tarumã – Barro Floresta 36072-090 Juiz de Fora – MG. E-mail: pedror.oliveira@uol.com.br

Fonte:

Perspectiva Teológica