No dia 19/02/2017, João Batista Libanio completaria 85 anos de vida. Em memória do grande teólogo; professor; escritor; conferencista; orientador de estudos; assessor das CEBs, das Pastorais, da CRB e da CNBB; religioso jesuíta, presbítero da Igreja e vigário da Paróquia Nossa Senhora de Lourdes em Vespasiano – MG, o Observatório da Evangelização publica uma série de reflexões sobre as contribuições dele para as ações evangelizadoras da Igreja.
Contribuições de João Batista Libanio para a refundação das CEBs – 2ª Parte
Pedro A. Ribeiro de Oliveira
2. A pletora do discurso – o 3º Encontro Intereclesial de CEBs – 1978
O Encontro de João Pessoa – PB seguiu um método muito diferente do anterior, cujos participantes foram separados em dois espaços de trabalho: num salão reuniam-se os e as representantes das comunidades; em outro reuniam-se bispos, assessores e demais convidados. Esse método foi criticado por não favorecer o diálogo entre todos, mas foi a solução encontrada para que tanto o pessoal vindo das bases pudesse se expressar sem constrangimento quanto os bispos estivessem à vontade com os assessores. Em João Pessoa os e as representantes das bases foram os principais protagonistas do Encontro, pois a eles coube debater os problemas levantados pelos relatórios, deixando os bispos e assessores na posição de ouvintes privilegiados. É a partir dessa situação que Libanio redige seu texto. Ele havia, é claro, estudado os relatórios; mas o texto final já foi influenciado pelo desenrolar do Encontro que ele qualificou como o momento de quebra do silêncio das CEBs:
Até então (1975) praticamente reinava um duplo silêncio teológico. Silêncio sobre as CEBs. Silêncio das CEBs. Rompeu-se vitoriosamente, em Vitória, o primeiro. (…) Não se podia mais esconder a criança em casa. Já tinha crescido bastante. (…) Defrontara-se corajosamente, em idade tão precoce, com a fúria da perseguição, as ameaças dos incomodados, a suspeita dos senhores das instituições dominantes. A novidade perturba a ordem. Esse surto eclesial e popular prejudicava a quem compreendia a Igreja sempre de um modo e estava acostumado a ver o povo comportar-se na sua lenta e tranquila dependência (1979, p. 766).
O 3° Encontro, com 160 relatórios vindos das bases, vai além do “discurso sobre as CEBs. Nasce um discurso das CEBs com uma superabundância impressionante. É a pletora do discurso” (1979, p. 766). Libanio deixa-se fascinar por essa manifestação popular mesmo sabendo que esses discursos “foram provocados. Há uma instância de poder que os pediu, que lhes marcou limites de tempo, de teor. Não surgiram na espontaneidade dispersiva dos movimentos inconscientes de libertação” (1979, p. 769). Resultam da metodologia adotada para o Encontro. Para desvendar sua lógica ele recorre a M. Foucault, cuja filosofia do poder gozava de enorme prestígio. Neste artigo deixaremos de lado essa análise do discurso e focalizaremos tão somente algumas de suas conclusões.
2. 1 A novidade do discurso
Libanio afirma que “estamos diante de um discurso eclesial popular”. Sua forma literária é o “rascunho”, a “descrição espontânea”, “a transmissão imediata das próprias experiências. É realmente uma pequena literatura” (1979, p. 777). Seu objeto são as opressões diárias que as classes populares sofrem:
Discurso colado ao dia-a-dia naquilo que ele revela os sofrimentos, as carências, as necessidades. A leitura do conjunto dos relatórios revela tônica dominante de uma situação extremamente sofredora, percebida, descrita, mas já não mais aceita conformisticamente. A riqueza do objeto não está na variedade descritiva ou na agudeza de suas análises. Consiste precisamente nesse aspecto existencial, repetitivo, revelador de um lado da extensão das forças dominadoras e doutro da ampla tomada de consciência nas CEBs de tal realidade (…) “realidade dura, feia e triste” (1979, p. 778).
Efeito dessas falas no interior da Igreja, observa Libanio, é que elas contribuem duplamente para o seu processo de libertação. Para fora, porque são um “chamado à revisão interna de suas estruturas e mecanismos, à reconsideração de suas alianças, de suas relações com os agentes sociais dominantes”. Em sua face interna, porque “esse discurso profundamente ‘democrático’ – no mais puro sentido etimológico – valoriza dentro da Igreja a dimensão teológica da presença do Espírito em todos os fiéis e de modo singular nos mais pobres, mais fracos. É a sabedoria de que fala São Paulo (l Cor 2,1-5). Por isso mesmo, é um discurso que questiona e transforma a Igreja a partir das suas bases” (1979, p. 781).
2. 2 Fundamentos do discurso popular
É evidente a descontinuidade do discurso popular com o discurso teológico do magistério eclesiástico que por muito tempo esteve em vigor. Ela só foi possível devido ao Concílio Vaticano II e Medellín. Libanio traça o percurso histórico dessas mudanças que tornaram possível e fundamentam o discurso popular. Lembra os grupos nascidos da Ação Católica que romperam o “rígido sistema de relações hierarquia-leigo”, mas foram extintos devido ao “traumatismo que esses grupos provocaram em nossa Igreja”.
As CEBs só puderam “aparecer com um discurso novo, livre, espontâneo, autônomo, popular, leigo, sem as barragens até então vigentes” porque tiveram sua fundamentação na eclesiologia do Vaticano II (1979, p. 783).
A Conferência episcopal de Medellín faz uma dupla ruptura:
Conferência genuinamente latino-americana, ela exprime, catalisa todo o movimento de uma Igreja que quer ser original, fonte, autóctone, com colorido próprio, rompendo os laços de extrema dependência, pura refletividade, mera cópia plebeia de problemas, pastorais e discursos europeus. (…) O discurso das CEBs será precisamente reflexo dessa ruptura. É regional (1979, p. 783).
A segunda cissura deu-se no sentido de romper a exclusividade do conteúdo e temática religiosas, assumindo dentro do horizonte da religiosidade e fé questões ligadas ao bem-estar do nosso povo. (…) É um discurso religioso, mas cuja temática se desloca fundamentalmente para o “profano” diário, para os problemas socioeconômicos vividos cada dia. Alarga-se assim amplamente o discurso (1979, p. 784).
Devem ser consideradas também as novas condições de vida das classes populares após o golpe militar de 1964 e o regime ditatorial que se instaura. Ao se organizarem em defesa de seus direitos, sofrem repressão policial-militar e buscam refúgio no espaço religioso. Na medida em que setores de Igreja apoiam os movimentos populares, contra eles se voltam as forças de repressão. Isso produz uma cissura interna entre o “bloco fundamentalmente ligado à ideologia dominante” e o setor que quer dar “voz e vez” às classes populares. São bispos, sacerdotes, religiosas e “leigos de classes mais abastadas, especialmente jovens”, que assumem um trabalho de educação popular e organização das bases. Estas,
já despertadas mas acuadas pelo regime dominante, buscam um espaço onde refletir sobre a própria realidade, analisando-a, interpretando-a e ensaiando gestos e práticas de libertação. Conjugando esses dois movimentos, de baixo e de cima, num contexto de uma Igreja ferida, perseguida por segmentos da sociedade ligados aos interesses dominantes, estabelece-se o solo fértil para o novo discurso, reflexo da nova prática das CEBs (1979, p. 785).
Percebe-se então, na análise do discurso, que as CEBs são fruto e fatores de mudanças, tanto na Igreja quanto na sociedade brasileira. Na Igreja, porque incorporam e desenvolvem as rupturas feitas pelo Vaticano II e Medellín, dando origem ao discurso eclesial popular. Na sociedade porque ao revestirem de sentido religioso as lutas populares, lhes dão novo vigor.
2. 3 Novo horizonte
Libanio conclui seu texto com “esperança e alegria” porque “Comunidades populares de Igreja tomam a palavra, apossam-se dela e produzem-na como obra sua, como expressão de sua vida” (1959, p. 785). Esse fato dá origem a uma “verdadeira democratização” do espaço eclesiástico, no sentido de que agora o povo pobre expressa livremente sua realidade sofrida, e é escutado nessa fala. “Não se limita ao nível de arengas classistas, mas ascende à universalidade evangélica. Pois conecta tais necessidades ao plano de Deus, à revelação do Reino de Deus, à perspectiva da criação e redenção”. Daí sua esperança: “se tal discurso se firmar, as CEBs assumirão função relevante, em relação a todo o corpo eclesial e aos agentes sociais de transformação da realidade, numa linha de participação e liberdade”. Aponta, porém, o risco de uma forma sutil de dominação do discurso popular por agentes de pastoral que buscam no trabalho junto às classes mais pobres um lugar terapêutico para sanar “suas angústias, carência afetiva ou insegurança de personalidade”, ou um lugar onde possam exercer seus “desejos inconscientes de dominação ou de autovalorização” (1979, p. 786). Recomenda, então, melhor formação de agentes de pastoral com “supervisão de pessoas experimentadas”.
Isso lhe permite a formar, na conclusão, que “pouco a pouco estaremos percebendo que nos é dado viver numa Igreja, onde a força do Espírito faz surgir, da sabedoria pobre dos fracos, discursos de fé, de esperança e de amor, como apelativos de conversão a todos nós” (1979, p. 787).
Referências:
LIBANIO, J. Batista: Comunidade Eclesial de Base: pletora do discurso. SEDOC, Petrópolis, 1979, p. 765-787.
Sobre o autor:
Pedro A. Ribeiro de Oliveira. Nascido em Juiz de Fora – MG. Doutor em Sociologia pela Universidade Católica de Louvaina (1979). Foi professor nos Programas de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora e da PUC-Minas. É membro da Equipe do ISER-Assessoria. Desde 1976 tem assessorado as CEBs no Brasil. Endereço: Sítio Tarumã – Barro Floresta 36072-090 Juiz de Fora – MG. E-mail: pedror.oliveira@uol.com.br
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