Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães
A fé cristã para ser bem vivida precisa estar profundamente encarnada na realidade local onde está inserida. Ela é chamada a estar antenada com o que acontece no nível global e sempre aberta aos sinais do tempo e das provocações da presença do Deus da vida, que, com Jesus ressuscitado e com o Espírito Santo, faz história libertadora com seu povo amado até a chegada da pátria definitiva na comunhão amorosa n’Ele e com Ele.
Evangelizar é uma ação que se concretiza sempre como um anúncio-testemunho de uma boa notícia, fundamentada na vivência gratuita do amor infinito de Deus por nós. Este amor revelou-se em Jesus Cristo como crença-vivência-testemunho da chegada do Reino de Deus no meio de nós. Deus tem um projeto salvífico universal que faz tudo transforma-se pela lógica do amor desde os mais pobres. Dito de outro modo, para quem vivia ou jazia nas trevas da exclusão e da opressão, sem ânimo, uma Luz brilha para eles. Esta faz renascer a esperança, pois, renova o horizonte de sentido e restaura as forças para a construção de outro futuro possível. E o que move esta caminhada é uma certeza de fé: Deus é estradeiro conosco e o futuro último será de comunhão amorosa com Ele.
Como anunciar-testemunhar esta Boa Nova, que o Cristianismo tem a pretensão de ser portador e parturiente, em contexto quilombola? É o que pretendemos aqui refletir.
Primeiro passo: compreender historicamente e reconhecer a existência de comunidades quilombolas
Nos conflitos que forjaram a história do Brasil, encontramos significativas chaves de compreensão para a realidade de tantas comunidades quilombolas. Só podemos compreender uma comunidade quilombola quando entendemos os processos históricos que suscitaram o surgimento dos quilombos, ou seja, comunidades de escravos fugitivos ou alforriados, organizadas em vista da sobrevivência em contexto de perseguição, opressão e negação de sua dignidade humana.
As comunidades quilombolas estão situadas, geralmente, em lugares estratégicos. Na época de sua fundação, seus territórios se encontravam escondidos e/ou distantes dos espaços cobiçados pelos membros das casas grandes, das rotas das bandeiras ou dos centros de comércio.
Na origem dessas comunidades, há sempre a memória compartilhada do sangue jorrado e do sofrimento vivido, lentamente transformados em fonte de resistência, de identidade e de veiculação-internalização de valores, tais como a consciência da própria dignidade, do valor da liberdade e da importância do coletivo para a sobrevivência do grupo.
Os mais velhos quase sempre são reconhecidos, considerados bibliotecas vivas, contadores de história, guardiões do tempo da escravidão. Suas falas transformam-se em narrativas e são apropriadas pelos mais novos. Elas forjam mentalidades, inspiram processos identitários, elaboração do bem viver, cantigas, lamentos, danças, ritos e orações. Os mais jovens são vistos como aqueles que garantirão a continuidade da comunidade na construção do futuro. Cuidar de seu bem estar, das fontes de sustento da autoestima e do horizonte de sentido, do processo de construção de sua identidade é tarefa de todos. Nesses dois elos, os mais velhos e os mais jovens, passam o fio tênue que sustenta a esperança de um futuro melhor para todos.
As comunidades quilombolas são marcadas pelo cultivo da alegria e pelo senso do coletivo que brota da história compartilhada marcada pela exclusão, pela escassez e pelos desafios da sobrevivência. No início, elas eram caracterizadas estruturalmente pela subsistência, o escambo e as regras básicas de autogestão. Com o fim da escravidão e o lento processo de mudança da mentalidade escravista, muitas dessas comunidades conseguiram manter-se e até mesmo prosperar, estabelecendo relações sociais, comerciais e de trocas culturais. Muitas ainda permaneceram isoladas e/ou excluídas dos processos que promovem o reconhecimento da cidadania e criam caminhos de acesso às políticas públicas. Outras foram descaracterizadas com os processos de miscigenação, expropriação e exploração. Com a ocupação e transformação do território brasileiro, muitas comunidades quilombolas desapareceram, engolidas pelo “progresso”. Outras porque não foram integradas ou reconhecidas ou contempladas pelas políticas públicas.
Nos últimos tempos, sobretudo durante os governos populares, muitas comunidades quilombolas começaram a ser reconhecidas. Outras se encontram em processo de reconhecimento. E muitas outras ainda não foram reconhecidas e estão ameaças pela cobiça por seus territórios, pela perseguição aos seus costumes e tradições ou pelo ancestral preconceito étnico contra os descendentes de escravos.
O que define as chamadas comunidades quilombolas e o que caracteriza uma comunidade quilombola é a sua herança cultural e étnica, que atravessou oceanos de dificuldades e de perseguições sem serem exterminadas ou destruídas.
O cristianismo, com suas igrejas, tem algo a dizer-testemunhar para essas comunidades? Quando os cristãos olham para as comunidades quilombolas o que vêem?
Segundo passo: Repensar continuamente o significado e o sentido de evangelizar à luz da prática liberadora de Jesus de Nazaré
São poucos os cristãos que, infelizmente, buscam refletir criticamente sobre o significado profundo de evangelizar e de que o anúncio-testemunho do Evangelho do Reino é missão de todas as pessoas que assumem, no batismo, o seguimento de Jesus como horizonte maior de sentido para suas vidas.
A compreensão predominante de evangelizar ainda é a de que se trata de um conjunto de ações eclesiais autoreferenciadas, realizadas pelas lideranças cristãs – bispos, padres, diáconos, religiosos/as e leigos/as que assumem ministérios ou serviços na vida da igreja, objetivando preparar as pessoas para receber os sacramentos da fé: batismo-crisma, eucaristia, confissão, matrimônio, ordem, unção dos enfermos. Pensam também que se trata de criar estratégias ou ações eficazes para divulgar, propagar e fazer novos cristãos aumentando, cada vez mais assim, o número daqueles que assumem a fé em Jesus Cristo como o Filho de Deus e que reconheçam que Ele morreu na cruz para nos salvar. Outros ainda pensam que se trata das ações eclesiais que visam, sobretudo nesse contexto de perda de fieis, conservar a fé dos que estão dentro do conjunto de fieis.
É claro que essas ações estão presentes da vida da Igreja, mas compreender assim o significado e o sentido de evangelizar seria, mais do que um recorte reducionista, um grande equívoco. Vejamos as razões dessa afirmação.
Evangelizar é necessariamente o compromisso de concretizar, no contexto onde a Igreja está inserida, a continuidade da missão libertadora de Jesus. Por isso a grande pergunta do evangelizador é sempre a mesma: o que Jesus faria diante desta situação? Sem conhecer de perto a prática libertadora de Jesus de Nazaré, nossa compreensão de evangelizar está sujeita a cair de deturpações fáceis.
Jesus foi um homem consciente da opressão e da lógica de exclusão de seu tempo. Ele, como habitante da pequenina Nazaré da Galileia, testemunhou de perto a dor e a angústia dos mais pobres. Ao aproximar-se da vida diária e da situação vivida pelos doentes, estrangeiros, mulheres, crianças, pequenos agricultores endividados perdendo as suas terras e deixando-se escravizar, trabalhadores rurais desempregados vulneráveis a toda forma de opressão… escutou o clamor que brota dos porões da humanidade. Discerniu que o valor maior é a dignidade da vida!
Jesus vivenciava, simultaneamente, a presença amorosa do Deus da vida, a quem experimentava como o Abba querido, como aquele que nos sustenta e nos acalenta solidariamente com o seu amor de Pai. Jesus foi tocado profundamente pela experiência dos profetas da história. Mais do que indignação ética diante da negação do valor da vida e da dignidade de cada pessoa humana, Jesus sentiu, em seu interior, o impulso divino para fazer de sua vida um dom-serviço. Percebeu com clareza o que isso exigiria dele e foi fiel até as últimas consequências: denunciar-desconstruir a lógica da exclusão, as injustiças do Império e das classes dominantes e anunciar-testemunhar a chegada do Reino de Deus enquanto horizonte escatológico capaz de fincar os alicerces de um projeto histórico transformador. O Deus da vida tem um projeto de vida plena para os seus filhos e filhas. Este fundamenta-se na lógica da liberdade-responsabilidade, do amor-fraterno e da justiça-inclusiva, no cultivo da cultura do cuidado e zelo com a dignidade da vida e da paz.
Podemos afirmar categoricamente que só há evangelização quando a prática libertadora de Jesus se atualiza no contexto do anúncio-testemunho do Deus da vida e de seu projeto do Reino.
Mas o que significa evangelizar em contexto de comunidades quilombolas? Como concretizar em contexto quilombola a prática de Jesus?
Terceiro passo: Discernir o sentido de evangelizar em contexto quilombola
Não pretendemos aqui apresentar qualquer definição prévia, uma espécie de receita de evangelização, até porque está já está consignada na Palavra de Deus, baliza de toda ação evangelizadora. Além disso, não podemos esquecer que cada comunidade quilombola tem suas singularidades históricas.
Queremos tão somente, nos limites dessa reflexão, compartilhar alguns marcos importantes na hora de concretizar o necessário discernimento das urgências e do planejamento das ações evangelizadoras que concretizem a prática de Jesus em cada comunidade específica, como também as Diretrizes assumidas pela Igreja Particular, onde as ações evangelizadoras serão realizadas. Na Arquidiocese de Belo Horizonte, por exemplo, há dez compromissos assumidos no Projeto de Evangelização “Proclamar a Palavra”: Rede de comunidades; Opção preferencial pelos pobres; Igreja da acolhida; Fé, política e cidadania; Família; Protagonismo dos leigos e leigas; Opção preferencial pelas juventudes; Formação integral e permanente; Catequese; Comunicação e cultura.
Em primeiro lugar, importa aproximar afetivamente, ouvir e conhecer de perto, sem qualquer juízo de valor, a história de luta da comunidade. Trata-se de verdadeiro pressuposto para toda ação evangelizadora o reconhecimento de que concretiza-se ali uma comunidade com uma história de vida que precisa ser ouvida, acolhida, respeitada e valorizada pela Igreja, vocacionada a ser, em sua raiz última, sacramento do Reino de Deus. Da escuta da história da comunidade é que brota o clamor contra as injustiças, conhece-se os passos já dados, as vitórias e os fracassos, e, sobretudo, conhecem-se os anseios por mais vida e os desafios do passado, do presente e do futuro.
Em segundo lugar, em consonância com a primeira, trata-se de deixar que a história coletiva da comunidade – que se concretiza em histórias de vida pessoais, com todos os altos e baixos, valores e acertos, mas também limites e contradições – penetre no coração da Igreja. Importa que esta seja acolhida, valorizada e respeitada, de fato, como realidade importante para a Igreja e para o projeto de evangelização em curso. A Igreja precisa ser vista como aliada e parceira, como aquela que quer, em primeiro lugar, o bem da comunidade e não a sua própria ampliação numérica ou territorial. A tomada de consciência da presença do Reino de Deus é sempre recebida como boa notícia capaz de potencializar os anseios de vida nova, no nível coletivo e pessoal, e de promover caminhada de conversão ante as exigências de prática da justiça, da misericórdia, do amor fraterno e de cuidado com a casa comum. Não se trata de realidade proselitista ou apologética.
Em terceiro lugar, importa pensar em como ajudar a comunidade avançar em suas lutas e conquistas políticas de cidadania, seja participando das lutas em andamento, seja discernindo outras possibilidades ainda não despertadas pela própria comunidade: reconhecimento público da comunidade quilombola, demarcação de suas terras, cultivo e valorização de sua autonomia, de sua cultura e de sua identidade, acesso às políticas públicas de educação, saúde, transporte, de tecnologias, defesa da liberdade de culto, dentre outras. Isso significar dar as mãos e caminhar junto.
Em quarto lugar, assumir, como compromisso contínuo, a procura de meios concretos que ajudem a comunidade quilombola, com toda a sua dignidade internalizada e autonomia cidadã, por ela mesma e ao seu lado, a organizar-se para defender seus interesses e, de forma crescente, a inserir-se nos âmbitos municipal, regional, estadual, nacional e até mesmo internacional para participar da vida em sociedade. Isso pode acontecer a partir da valorização das potencialidades históricas, culturais, turísticas, dentre outras, da comunidade e, especialmente, da participação em redes de intercâmbio e parceria com outras comunidades quilombolas, cooperativas, associações, grupos culturais, ONGs etc.
Em quinto lugar, concretizar com os cristãos ou comunidades cristãs eventualmente presentes na comunidade quilombola um processo de formação integral e continuada crítico. De forma que, possam conhecer, com profundidade libertadora, a Palavra de Deus, a pessoa e prática de Jesus e de seus seguidores, o magistério e a doutrina social da Igreja, o projeto de evangelização da Igreja local, bem como fazer uma leitura crítica e libertadora, com naturalidade, das ações evangelizadoras do passado, da devoção aos santos e santas, das festas religiosas, do processos de sincretismo religioso e da dimensão ecumênica dialógica da fé cristã.
A fé cristã para ser bem vivida precisa estar profundamente encarnada na realidade local onde está inserida. Ela é chamada a estar antenada com o que acontece no nível global e sempre aberta aos sinais do tempo e das provocações da presença do Deus da vida, que, com Jesus ressuscitado e com o Espírito Santo, faz história libertadora com seu povo amado até a chegada da pátria definitiva na comunhão amorosa n’Ele e com Ele.
Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães
Teólogo leigo, professor do Departamento de Ciências da Religião e secretário executivo do Observatório da Evangelização PUC Minas