Quem conhece a vida de São Francisco de Assis sabe da profunda experiência espiritual vivenciada por ele nas ruínas da igrejinha de São Damião. Segundo seus biógrafos, Francisco, absorto em oração diante do crucifixo, discerne os apelos de Deus: “Francisco, restaura a minha igreja. Não vês que ela está em ruínas?”
Muitos acontecimentos ao longo desses três primeiros anos de pontificado indicam que a retomada da simplicidade da estética evangélica, da proximidade amorosa das pessoas, da dimensão missionária do batismo, e, sobretudo, do primado da misericórdia lançados pelo “papa do fim do mundo” – foi assim que o atual bispo de Roma se auto titulou – está provocando uma autêntica renovação do ar que penetra os pulmões da Igreja católica. Será um sopro do Espírito Santo? Desejamos que Francisco inaugure um tempo novo e de renovado fôlego para a Igreja, pela atualização da fé cristã nos marcos da cultura contemporânea, pela renovação criativa do colocar-se a serviço do povo de Deus e de toda a humanidade que coexiste em nossa Casa comum, pelo anúncio e testemunho da boa nova do Reino de Deus e, principalmente, pela concretização diária do amar, tal como foi vivido por Jesus Cristo.
Este hálito de vida nova, soprado pelo Espírito de Deus, nas velas da barca de Pedro no último conclave, aquele que elegeu Francisco como novo timoneiro, parece que a está conduzindo a novos rumos e a singrar por novas rotas no oceano da fé. Cinco séculos depois das Grandes Navegações, outras caravelas partiram novamente do grande centro, a Europa, e, depois de adentrar pelas ondas de além-mar, chegaram a esta mesma periferia, a América Latina. Porém a novidade dessa rota não está tanto numa possível conquista do centro pela periferia, mas na construção de “um outro papado possível”, parafraseando o lema do Fórum Mundial Social. Um modo de exercer o ministério de Pedro que deixa decididamente o solitário e distante trono do altar para estar junto e misturado na caminhada do povo de Deus.
Esse agir pastoral que escuta o clamor dos excluídos e que não teme andar de mãos dadas com os diversos movimentos de defesa da dignidade da vida remete imediatamente à luta dos mais pobres e crucificados pelas históricas contradições sociais. Francisco foi forjado pela fé e esperança teimosa dos pequenos que se nutrem da fidelidade até as últimas consequências do crucificado e por isso não desistem, mesmo diante do sangue derramado das incontáveis vítimas que fecundam este solo latino americano, tão marcado pela colonização, pela exploração humana e dos recursos naturais, pela exclusão social e pela violência dos poderosos.
Como aqui ainda não conseguimos democratizar os grandes meios de comunicação, eles, por estarem nas mãos de grupos poderosos, procuram sistematicamente usurpar e tirar proveito de cenários como o atual da Igreja. Percebem a importância política de um líder com grande influência na maior comunidade de fieis do mundo. No entanto, é preciso cultivarmos um olhar mais profundo e apurado, como aquele de Santa Luzia frente ao julgamento arbitrário do governador Diocleciano[1]. Quando contemplamos a pessoa de Francisco, seus ensinamentos e posturas proféticas percebemos que não se trata de marketing religioso ou uma estratégia da cúpula para estancar a grave perda de fieis das últimas décadas ou trazer de volta ao redil as ovelhas afastadas. Os documentos do magistério de Francisco – Evangelii Gaudium, Laudato Si e Amoris Laetitia, mas igualmente suas homilias, discursos e posturas proféticas revelam que estamos diante, não de algo novo, mas da retomada da preocupação com a coerência com o Evangelho. Merece destaque o recente discurso proferido no Capitólio, em sua viagem aos Estados Unidos em ocasião de emigrações ilegais devido aos conflitos inter-étnicos no norte da África. Com muita simplicidade e sabedoria, Francisco fez duras críticas aos norte americanos, mas sem agredi-los ou desprezá-los. Pontuou corajosamente que o “sonho americano” e os heróis daquela nação ensinaram ao mundo grandes valores, dentre eles o da liberdade, e que, nesse sentido, os estadunidenses deveriam acolher os emigrantes já que há cinco séculos atrás todos que vieram para as Américas eram estrangeiros nas terras do Novo Mundo. Houve críticas ferrenhas de parlamentares conservadores, intelectuais liberais e até mesmo de líderes religiosos da própria igreja ao discurso do Pontífice, tentando o caracterizar, de forma pejorativa, como um discurso puramente comunista. Isto comprova, a nosso ver, que assim como São Francisco de Assis, no fim da Idade Média, o Papa Francisco, na crista da Idade Pós-Moderna, experimenta o mesmo chamado de restaurar a Igreja que está em ruínas. E o faz com os tijolos e pedras vivas, aqueles que estão a margem da sociedade e clamam aos céus por justiça.
Outros gestos proféticos merecem destaque. Primeiro quando, depois de denunciar a tragédia da globalização da indiferença ante do drama dos refugiados tão disseminada pelos países da Europa. Francisco toma a decisão de levar com ele para o Vaticano doze refugiados sírios e colaborar fraternalmente na busca de uma nova vida longe das ameaças dos terríveis e violentos conflitos vividos[2]. Segundo quando, ao se reunir, pela primeira vez no Vaticano, com as lideranças dos movimentos sociais de defesa da vida, ao ouvir seus clamores, proclama para reforçar a esperança e a perseverança em suas lutas pela plena cidadania: “Nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos”.
Se alguém ainda tem dúvida sobre o poder transformador do Cristo misericordioso e libertador, do qual o “santo pobre de Assis” e o “papa do fim do mundo” se nutrem, contemplar os feitos históricos do Cristianismo despertará a sua atenção para discernir os efeitos eclesiais e sociais provocados pelo jeito singular de Francisco exercer o ministério do Pedro como bispo de Roma. Pela primeira vez na história, setores marginalizados e crucificados da sociedade e da Igreja são acolhidos abertamente por Francisco. Alguns exemplos: bispos de dioceses das periferias são chamados, escutados e reconhecidos nos encontros; promove-se uma gestão mais participativa e de corresponsabilidade na vida da Igreja; a dignidade dos homossexuais e dos recasados é discutida, valorizada e defendida; a cidadania eclesial da mulher volta a ser discutida; leigos e leigas são convidados a participar mais da vida da Igreja; os cuidados com a Casa comum passam a fazer parte da doutrina social da Igreja… Aqui é importante ressaltar que o atual papado, apesar de suas especificidades, é fruto de um momento anterior, iniciado em 1961, com a abertura do Concílio Vaticano II, pelo então papa João XXIII.
O lugar de origem marca e influencia as relações sociais dos indivíduos, como aponta o sociólogo francês Loic Wacquant no artigo “A estigmatização territorial na idade da marginalidade avançada”. Nesse sentido, o jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio, ao tornar-se bispo de Roma, levou consigo os tesouros guardados ao longo da caminhada da Igreja latino americana. Tesouros estes consagrados no sangue derramado de seus mártires pelo compromisso com a construção da sociedade pautada pela justiça e pela solidariedade fraterna e inclusiva. Como um autêntico e sábio timoneiro, Francisco tem conduzindo a barca de Pedro bem consciente da presença do Espírito Santo na vida de cada homem ou mulher de fé.
Glaucon Durães
Estudante de Ciências Sociais da PUC Minas
Membro da equipe de colaboradores jovens do Observatório da Evangelização
[1] Santa Luzia de Siracusa, aclamada padroeira da visão pelos católicos, é um símbolo de discernimento e firmeza de fé. Soube nas vésperas de seu martírio, não se deixar seduzir pelas pompas humanas. Hoje, a jovem siciliana nos convida a não cairmos nas pompas de nossos tempos, dentre elas, é importante citar aqui, as falsas imagens criadas pela mídia e pela indústria cultural, que por muitas vezes, mercadorizam irresponsavelmente a imagem de Francisco.
[2] É importante ressaltar que para além da quantidade de refugiados acolhidos, o gesto de Francisco tem que ser analisado principalmente pelas óticas das representações simbólica e política.
Com bastante propriedade e visão ampliada do assunto, o autor merece destaque no cenário das ciências sociais por sua perspectiva diferenciada, que muito contribuirá para um mundo com mais amor, esperança e fé. Que Francisco nos ensine a caminhar bem, e que tenhamos Glaucon para narrar seus passos.
Obrigado Laís pelo retorno. Sua participação enriquece o nosso Observatório. Com estima, Edward